A laicidade jurídica, com o tempero de uma pitada de ignorância geral e uma outra de má fé, proporcionou, semana passada, em Manaus, um espetáculo de linchamento cívico de todo em todo deplorável. Deu-se que a juíza de direito Ana Paula Braga, presidindo uma audiência de custódia, recebeu quatro pessoas presas por uma acusação de homicídio; manteve a prisão de uma e liberou as outras para que aguardem em liberdade o andamento da futura ação penal.
Isso é um fato absolutamente rotineiro na prática forense, como bem o sabem todos os advogados devidamente habituados ao exercício de esfregar o umbigo nos balcões cartorários. Mas a magistrada foi conduzida a um calvário de execração e ali crucificada como se tivera cometido uma heresia jurídico-social, daquelas com potencial para colocar em risco a própria sobrevivência da espécie humana. Foi-me impossível ficar indiferente a tamanha injustiça.
A vetustez que ostento no exercício da profissão é elemento catalizador da minha revolta quando vejo a imprensa e, na esteira dela, a opinião pública, alardear inverdades como se fossem dogmas intocáveis. É um desserviço. Certo que a maioria não tem obrigação de conhecer o direito e suas intrincadas nuances (ao contrário, muitos dos que têm essa obrigação, dele sabem tanto quanto eu sei de física quântica). Mas essa ausência de conhecimento, precisamente por o ser, deveria funcionar como freio para reivindicações inteiramente desprovidas de qualquer base lógica.
Vamos ao contexto técnico dos fatos. O mais empedernido dos punitivistas penais há de concordar com uma evidência que chega a ser acaciana: ninguém nasce preso, significando isso dizer que a liberdade é o estado natural da humana gente. Vai daí que, praticado um fato definido como crime, a punição, seja ela qual for, só deve ser aplicada depois de concluído aquilo que o jargão jurídico conhece como “devido processo legal”. Este se trava entre acusação e defesa, com a produção de provas e recursos, competindo a decisão final sobre a procedência ou não da imputação ao órgão judicial incumbido do julgamento.
É possível que antes desse pronunciamento final, o magistrado entenda pela necessidade (friso bem a palavra necessidade) de restringir alguns direitos do acusado, inclusive sua liberdade. É o caso das prisões cautelares (temporária ou preventiva). Mas isso é, e tem que continuar sendo, a exceção. E olha que afirmo isso depois que o próprio Supremo Tribunal Federal, cedendo ao clamor da turba multa, entendeu normal prender uma pessoa depois da condenação em segundo grau.
Não consigo atinar como é que alguém pode ter dificuldade de entender este texto da Constituição da República: “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Pois muito que bem. A audiência de custódia é a oportunidade primeira que o juiz tem para por cobro a prisões ilegais, devolvendo ao seu estado natural o cidadão cujo recolhimento cautelar ao cárcere não se mostre absolutamente necessário, dentre das normas juridicamente preestabelecidas.
Escrevendo no facebook a respeito do vexame a que foi submetida a jovem magistrada amazonense, meu filho Luís Carlos, que também é juiz e que também já foi vítima da calúnia, da inveja e da ignorância, assim desabafou:
“Um dia meu filho, pequeno, viu uma matéria no jornal: “Polícia prende e juiz solta”. Era sobre o pai dele. Na sua ingenuidade de criança, ele perguntou: mas pai, não é assim que tem que ser? Como que o juiz poderia prender e a polícia soltar? Eu expliquei que os jornais gostam de se aproveitar da falta de conhecimento da população e, para vender mais, criam um clima de desrespeito a direitos. Tentei explicar, apesar da idade dele, que a pessoa só é considerada criminosa, bandida, meliante, depois que há um processo e uma sentença e que isso é um direito de todos.
A polícia faz o trabalho dela, prendendo, e o juiz avalia se a prisão deve permanecer até o julgamento, e que essa avaliação não tem nada a ver com se a pessoa é culpada ou inocente, pois, caso contrário, o juiz estaria inclusive julgando antes da sentença, o que a lei e a Constituição vedam. Não expliquei exatamente com essas palavras, mas valem aqui só porque vi que há uma juíza no meu Estado, o Amazonas, sendo atacada por alguns blogs porque entendeu pela soltura de alguns presos. A doutora Ana Paula Braga. Não sou representante de associação de juízes e, apesar de filiado, não falo por nenhuma delas. Mas a doutora Ana Paula tem minha solidariedade, porque o que a sociedade não pode é ter juiz com medo, juiz acuado, juiz covarde, pois cada cidadão, em cada problema individual, quando recorrer à justiça, vai precisar de um juiz de verdade”.
E mais não disse nem lhe foi perguntado. Também, não é preciso. O fato foi destrinchado em todas as suas minúcias, com sentimento e sobriedade, mostrando o absurdo a que podemos ser conduzidos se e quando, por ignorância ou má fé, tentamos inverter a escala de valores. Que o exemplo sirva para evitar a repetição.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])