Era infalível que no domingo de carnaval o Vevé descesse a rua Leonardo Malcher fantasiado de baiana. Todos os moradores o conheciam e como que esperavam aquela manifestação de extravasamento de uma tendência que, nos demais dias, só se expressava por vias transversas. Era uma criatura acredito que na casa dos trinta e que complementava sua renda, se é que a tinha, aplicando injeção nos vizinhos. Vevé era fifi, assim diziam as conversadeiras instaladas nas calçadas em suas cadeiras de balanço, durante as noites mornas e úmidas da Manaus dos anos quarenta e cinquenta. Se falavam de tudo, como escaparia o Vevé de suas cogitações?
Não que isso funcionasse como um demérito. Era apenas uma constatação, sem qualquer influência na cordialidade com que o “enfermeiro” era recebido nas residências para o desempenho de sua humanitária atividade. O máximo que se dizia era que “homem com homem dá lobisomem e mulher com mulher dá jacaré”, o que era uma ingênua forma de expressar aquilo que seria chancelado hoje como homofobia, a fazer o pesadelo do politicamente correto. Puro desperdício de tempo porque, ao que parece, lobisomens e jacarés proliferam sem que esse fenômeno cause danos aos alicerces da civilização. Pelo menos, que seja do meu conhecimento.
Figuras da minha infância, que passam agora, toldadas, pela memória. O contraponto, exemplo do machismo exacerbado a partir do qual se forjaram os rudimentos da teratológica Lei Maria da Penha, era o Chico Pintado. Ruivo, quase albino, já tinha no biotipo a primeira excentricidade a fazer com que se distinguisse em uma comunidade tipicamente cabocla. Vivia, se não me trai a idade, como agregado na casa do engenheiro-agrônomo Antônio de Castro Carneiro, a de número 126, portanto bem próximo à nossa, fincada no número 122. Mas o Chico não ostentava nada da placidez e da bajulação de outro agregado, o José Dias, aquele que gozava das benesses dos pais de Capitu, no Dom Casmurro machadiano. Nada disso. Era conhecido (e temido) por uma valentia quase quixotesca, que se manifestava bissextamente nas noites em que nosso herói deliberava conviver com Baco. Aí, então, nenhuma cadeira ficava nas calçadas, recolhidas que eram imediatamente as senhoras e as crianças, pelo infundado receio de que o Chico aprontasse alguma estripulia. Nenhum fundamento havia no boato de que o Chico fumava maconha. A “canabis” não era conhecida por aquelas bandas, nem ele teria dinheiro para bancar o consumo. Apenas tomava seus porres, tudo indica que à base de Cocal, e fazia questão de demonstrar que “era homem para o que desse e viesse”. Bem ao contrário do Expedito, este um bebum em tempo integral, que só incomodava pela chatice com que varava as noites, entoando uma ladainha ininteligível para a bandeira brasileira.
Também era moradora da rua uma figura inesquecível: dona Joana Galante. Eis o que, em outro momento, escrevi sobre ela: “Era uma senhora como outra qualquer. Era negra, educada e elegante. E era umbandista. Para ser mais fiel ao vocabulário da época, era macumbeira. Só por isso, por esse horrendo crime, sofreu da banda podre, para usar uma expressão bem ao gosto do meu amigo Alfredo Moacyr Cabral. Sua casa ficava a uns cento e cinquenta metros da de meus pais. Era um modesto chalé, com um vasto terreno frontal e lateral, onde se desenvolviam os rituais daquela concepção religiosa. A lembrança é tênue, pois falo do fim dos anos quarenta, quando não tinha mais que seis anos de idade. Mas os enfeites do terreiro, o rufar dos tambores e o pau de sebo, ainda os recordo, pois eram indispensáveis nos dias de festa do umbandismo.
Também não esqueço de que dona Joana Galante de vez em quando era vítima da ação policial, eis que a autoridade se julgava apta a lhe tolher a liberdade pelo simples fato de que ela não frequentava a igreja católica e – que coisa terrível – “fazia macumba”. Meu pai e minha e mãe, católicos de carteirinha, sempre a respeitaram e não foram poucas as vezes em que o velho Valois foi instado a interferir para colocar termo nessas manifestações de intolerância que, em retrospectiva, só confirmam o ambiente do medievo em que vivíamos.
Anos depois, muitos anos, em uma campanha política, eu a encontrei em seu novo espaço, um terreiro no bairro de São Jorge. O tempo já se fazia sentir, mas ela continuava altiva, consciente da importância de seu papel como guia espiritual dos adeptos de sua seita. Quando soube de quem eu era filho, dispensou-me carinho especial e teve a supina gentileza de me colocar em lugar de destaque para assistir aos trabalhos das mães e pais de santo, na evocação de seus orixás.
Tributo-lhe minhas homenagens, dona Joana Galante, mãe de muitos santos e de muita gente”.
Tudo lembranças de um tempo que não posso dizer melhor ou pior. Apenas afirmo que era diferente e, talvez por isso, dele tenha eu muitas saudades.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])