O ano chega ao fim. As Festas estão aí. Primeiro o Natal que, magicamente, consegue envolver a todos, mesmo os ateus mais empedernidos, como é o caso deste humilde escriba. Efeito, talvez, de uma criação católica, a partir da qual é impossível não lembrar do modesto presépio armado por dona Lucíola. Depois o réveillon, com toda a carga de esperanças e anseios que consegue despertar indiscriminadamente. Com ou sem razão, a verdade é que o simples virar de página no calendário gregoriano cria a impressão de que algo pode mudar para melhor. Pode ser apenas um ingênuo otimismo. Que seja; pelo menos não é tributável.
Balanceando o ano que finda, vejo que, na advocacia, é imperioso debitar duas perdas da maior significação: Marcelo Semen e João dos Santos Pereira Braga. Aquele, jovem, revelando uma vocação profissional de alta qualidade, partiu deixando uma dor incontrolável, como sói acontecer quando o ciclo da vida é abrupta e inexplicavelmente interrompido. Braga, mestre de gerações, deixou um legado exemplar de comportamento ético, quer nas tribunas forenses, quer na cátedra, onde revelava a proficiência de um professor como todos os do ramo deveriam ser. Choro ainda a ausência de tão ilustres colegas.
Perdemos, de novo, a Copa do Mundo de futebol. É certo que não vimos a repetição do humilhante sete a um, que amargamos aqui mesmo em solo pátrio. Também, seria demais. A frustração, porém, não foi menor. Fomos eliminados pela Bélgica que, se ostenta milenar história, nem por isso haveria de servir de obstáculo aos pentacampeões. Vem aí a Copa América. Vejamos no que dá.
Elegemos novo presidente. O PT, depois de desmandar no país durante treze anos, conseguiu o fenômeno de ainda disputar o segundo turno. Era uma luta insana, pois ele mesmo sabia que, depois de tudo o que fez e deixou de fazer, criou todas condições para uma reviravolta conservadora, isto se quisermos usar o termo mais ameno aplicável a tais fatos. Cá comigo, acho que voltamos no tempo e, embora outras sejam as condições objetivas, parece que cabe a advertência: “hay que tener mucho cuidado”, ou, para ficarmos no vernáculo, “todo cuidado é pouco” com os tempos que se avizinham. Minha consciência está limpa: não votei nem no Bolsonaro nem no Haddad. Eu, hein!
De qualquer forma, o assunto me faz lembrar, por mera associação de ideias, que no próximo dia 13 será o aniversário de cinquenta anos do Ato Institucional número 5. Tinha eu somente vinte e cinco quando aquela coisa abjeta foi parida. Que monstruosidade! Tenho eu aqui ao meu lado o texto integral da hediondez. Não consigo contemplá-lo sem que o medo, o pavor mais monstruoso, volte a me assaltar aos borbotões. A ditadura militar que, então, já há quatro anos ditava regras draconianas sem dó nem piedade, se superou a si mesma, eliminou totalmente a máscara e proclamou que não estava ali para brincar de democracia. La está escrito isto: “Art. 2º – O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República”.
É pouco? Então aí vai mais uma dose: “§ 1° – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios”. E ainda: “Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício de funções por prazo certo”. Para completar: Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, ordem econômica e social e a economia popular”. Só mais um adendo:
“Art. 11 – Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.
Basta, senão eu choro. E não quero fazê-lo. Prefiro me deixar envolver pela alegria inconsequente das Festas. Contemplar o pisca-pisca das árvores e lembrar que minha mulher tirou de letra um câncer cretino que a acometeu. Que meus filhos continuam me dando orgulho e que meus netos (ah, eles!) estão aí para me lembrar daquilo que posso considerar felicidade. Não fiquei rico. Seria impossível, cultivando a honestidade. Em compensação, não me sinto mais pobre. O que já não é pouco neste nosso amado e tão menosprezado país.
Estou entrando de férias. A todos um Feliz Natal e um ótimo (tomara) Ano Novo. Até janeiro, se vivo estiver eu. (Félix Valois é Advogado, Escritor e Poeta )