Na visão implacável do meu irmão Alfredo Moacyr Cabral, completar setenta e sete anos de idade não é motivo para regozijo de qualquer espécie. Ácido, ele, que já atingiu os oitenta, é também incisivo: “não encontrei nada que preste na velhice”. Já dá para perceber que, para o doutor Cabral, só pode ter sido obra de irreverente humor negro considerar o período como a “melhor idade”. Não lhe tiro completamente a razão. Ser velho não é brincadeira. “Melhor” com certeza não é, entendido que a comparação se faz com a juventude. Quando muito teria aplicação se o “bom” se aplicasse à morte, porque, aí, é covardia. Pior do que a “magra” não pode existir nada, sabido que ela é a negação de tudo. De qualquer forma, não radicalizo como o Alfredo e, mesmo sabendo que cada aniversário é só um marco a mais no caminho do nada, vou confraternizando e bebendo com os amigos. Algo como a aplicação relativa da advertência humorística: “visite o Piauí antes que ele acabe”.
Mas nos setenta e sete que alcanço neste sábado, 21, nem isso vou poder fazer. Encomendei um bolo para o meu festejo solitário. Pela internet, é claro, já que estou proibido de sair de casa, em razão da minha inserção definitiva e irrevogável num tal “grupo de risco”. Veio ele embrulhado em papel celofane. Apressei-me em abrir o pacote. Na parte frontal da iguaria, o símbolo da Cruz Vermelha, com a advertência em letras garrafais: “Cuidado. O Corona pode matar”. Não havia velas. Acho que seria agouro. No lugar do tradicional adereço, estavam plantados setenta e sete frasquinhos de álcool em gel. E, em separado, um cartão muito simpático do fabricante, com os votos de “feliz aniversário” e a advertência: “Corte o bolo de preferência com uma faca de plástico. O vírus se faz mais presente nos objetos de metal”.
Estou freneticamente me besuntando com o gel, quando toca a campainha. Era o porteiro do condomínio. Cumprimentou-me erguendo o cotovelo direito e, com o outro braço, me estendeu dois embrulhos, tudo com o rosto devidamente virado, que todo cuidado é pouco. Fiquei feliz, já que, pelo tipo de papel, eram presentes de aniversário. “Ora, vejam só, – matutei – alguém se lembrou da data, apesar da quarentena!” Abro o primeiro: dentro de uma caixa lacrada, em cuja parte superior havia uma caveira e dois ossos, encontro dez máscaras respiratórias, dessas que os médicos usam quando se entregam aos procedimentos cirúrgicos. Experimentei uma. Olhei-me no espelho e até que gostei do visual. Por via das dúvidas, passei álcool na máscara também. “Seguro morreu de velho”, proclamava minha sábia avozinha. Vou ao segundo mimo. Aqui, a coisa não estava tão macabra quanto no anterior. Não deixava, entretanto, de trazer a
mesma marca de precaução, eis que se tratava de um conjunto de dez pares de luvas cirúrgicas. Cheguei a imaginar que o entregador se havia enganado de endereço, uma vez que, bem ao meu lado, mora o outro Alfredo, que é meu filho e é cirurgião. De qualquer forma, enviei um agradecimento virtual pelo presente, o qual, por sua vez, me colocou num dilema: se calço as luvas, ainda assim tenho que usar o gel? Vou por aqui me adaptando como posso aos efeitos da pandemia.
Por falar nisso, e tendo em visto que não gosto de falar do que não conheço, fui ao Houaiss para tirar minhas dúvidas. Vi, primeiro, que endemia é “doença infecciosa que ocorre habitualmente e com incidência significativa em dada população ou região”. Exemplifica: “Na Amazônia e em certas regiões da África, a malária é uma endemia”. Depois fui cuidar da epidemia. Diz o autor que se trata “doença de caráter transitório que ataca simultaneamente grande número de indivíduos em uma determinada localidade”, podendo ser, ainda, “surto periódico de uma doença infecciosa em dada população e/ou região”. Na terceira acepção, é “aumento do número de casos de uma doença ou de um fenômeno anormal”. Finalmente cheguei à tal pandemia. Cuida-se de “enfermidade epidêmica amplamente disseminada”, com o esclarecimento de que, na etimologia grega, significa “o povo inteiro”.
Donde se há de concluir, afastadas as trevas da ignorância, que, se a epidemia já não é flor que se cheire, a pandemia, nem pensar. Já imaginou o povo inteiro pandêmico? Mas como foi, então, que o presidente da República incentivou concentrações populares e, ainda por cima, foi ele próprio saracotear no meio do “povo inteiro”, trocando apertos de mão? Seria um Bolsonaro ou um brontossauro a criatura capaz de um comportamento tão estúpido e irresponsável? Acho que não há diferenças.
Enquanto isso, vou dando o meu jeito de encarar a boçal pandemia e a solidão por ela imposta. Se o álcool em gel é tão eficiente para as partes exteriores do corpo, não vejo motivo para não lhe dar uma ajuda interna, usando um parente seu afastado: o Johnnie Walker de rótulo vermelho. Com ele, faço meu brinde solitário, esperando que o corona não leve ninguém a ter que enviar coroas de flores. Nem pensar, tô fola.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])