“Atrás das sete florestas, além das sete montanhas, na casa dos sete anões”, o corpo da Branca de Neve estava sendo velado. Vítima da gulodice, a moça sucumbira à lábia da rainha malvada e, comendo maçã cheia de veneno, caíra fulminada. Tudo porque era bonita. Os anões estavam desolados. Todos de máscara, ficavam por ali, rondando o corpo e lembrando do trabalho que dera acomodar a princesa na diminuta casa que habitavam. Era uma do programa Minha Casa, Minha Vida.
De repente, não mais que de repente, irrompe no ambiente um majestoso corcel branco, montado por intrépido cavaleiro. Sem tirar a máscara e mantendo a distância de dois metros do recém chegado, Mestre, o mais velho dos anões, a ele se dirigiu nestes termos:
– Vossa Alteza deve ser o príncipe que, segundo consta em nossos mais antigos arquivos, tem a missão de ressuscitar a princesa, dando-lhe um beijo na boca.
– Em quase tudo estais certo, nobre anão. Mas príncipe eu já fui. Agora eu sou rei e deixei o principado para meus três filhotes (provas da supremacia do sangue azul) que vão lá, do jeito que lhes é possível, me ajudando a conduzir o meu reino, tão vasto, tão amado e tão cheio de problemas. Imaginai, pequena criatura, que até com a imprensa minha real pessoa tem que lidar.
– Vossa Majestade – foi a vez do Mestre – nos honra com a sua presença e imagino como deve ter sido dificultoso sair da Corte para nos vir encontrar aqui neste fim de mundo. Mas tenho que lhe dizer, Majestade, que estamos com um problema gravíssimo. De uns tempos a esta data, surgiu por estes vales verdejantes um monstro pavoroso que já devastou boa parte da vizinhança. Acredito mesmo que nós aqui só estamos escapando porque, sendo anões, ainda não fomos vistos pelo gigante.
– E quem haveria de ser essa indesejada criatura que ousa entrar no meu reino e ameaçar meus súditos? Não me venhais dizer, meu bom homúnculo, que é um comunista? – foi a réplica do soberano, já visivelmente irritado com aquela intromissão.
Atchim, um anão que usava máscara reforçada em razão dos espirros sequenciais que sempre exibiu, se encarregou da resposta: Augusto rei, não me quer parecer que os estragos causados pelo monstro sejam coisa de comunista. Acho, se Vossa Majestade me permite a modesta opinião, que se trata de um tal de vírus, ao qual todos estão dando o nome de corona.
– É uma trama, com certeza – vociferou o rei. Linguagem cifrada de comunista. Corona é o mesmo que coroa, o que significa, até para o Olavo, que estão
conspirando para me tirar a coroa. Miseráveis, conhecerão todo o peso da minha real ira, disse o rei, a esta altura quase não conseguindo controlar o cavalo que, também impaciente, parecia ser mera extensão do corpo de seu nobre montador.
Retoma a palavra o Mestre: Bem entendo seu conturbado estado de espírito, nobre senhor. Mas Vossa Majestade ainda não se deu conta de que estamos diante de um problema imediato, para o qual minha apoucada sapiência não vê solução.
– Dizei-me logo o de que se trata ou vos mandarei chicotear, falou o rei.
E com estas palavras, assim se explicou o anão: Conforme está escrito, e Vossa Majestade bem o sabe, a defunta que ali repousa só conseguirá voltar à vida se for beijada na boca. Teria que ser por um príncipe, mas como foi Vossa Majestade que se apresentou, à sua real pessoa incumbirá o ósculo. Acontece que, por ordem expressa do corona, está terminante e rigorosamente proibido qualquer tipo de contato físico. Beijo, então, nem se fala. Basta que Vossa Majestade saiba que as anãs da aldeia já estão desconfiando da nossa masculinidade, porque faz tempo que não nos apresentamos.
– E pode minha real figura ser informada do que levou à tal proibição?
– Dizem que é um tal de contágio, Majestade.
– Como ousais assim me ofender, ó reles pigmeu? Ficai sabendo que, no meu castelo, tenho um espelho mágico ao qual assim me dirijo diuturnamente: Escravo do espelho meu, surge do espaço profundo e vem dizer se há no mundo rei mais atleta do que eu. E o espelho, que não é besta de me contrariar, responde sempre: Não, Majestade. Então, vamos deixar de conversa fiada que este contato com a plebe já está passando dos limites.
Veio, então, a ordem peremptória: Retirai a tampa desse ridículo caixão de vidro, que aqui estou eu pronto para levar a cabo meu heroico destino.
Cumprida a determinação, o rei envolveu o corpo da Branca de Neve com seu vasto manto e lhe depositou na boca um acalorado beijo, como só os reis sabem fazer. Mas nada aconteceu. A princesa, que morta estava, morta ficou, e o rei, virou-se possesso: Anões comunistas, estão me boicotando. Preguiçosos e inúteis. Heleno, meu fiel caçador, manda esses nanicos para a mina, procurar diamantes, que eu preciso aumentar o PIB. E não quero nunca mais ouvir aquela musiquinha sórdida que vocês costumam cantar: eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou. No meu reinado, não quero ninguém em casa. Todos ao trabalho. Bando de preguiçosos.
E viveram felizes para sempre.
(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor, Poeta – [email protected])