Em artigo publicado quarta-feira no jornal O Globo, o doutor Sérgio Moro esteve muito perto de fazer um “mea culpa”. Disse, por exemplo: “Não é o caso de falar em totalitarismo ou mesmo ditadura, no presente momento, mas o populismo, com lampejos autoritários, está escancarado”. A diferença que aí se pretende estabelecer é puramente semântica. Até chego a entender o pudor (quase vergonha) do doutor Moro. Afinal, há pouco mais de um mês era ele tido e havido como o superministro desse governo que escancara “lampejos autoritários”, o que, se quisermos continuar fazendo uso da semântica, não passa de arreganho fascista. Há de ser difícil, pois, conciliar aquela participação com uma análise isenta do que o bolsonarismo representa em termos de ameaça à normalidade democrática.
Sendo certo que “só não muda de opinião quem não a tem”, há de ser louvada a atitude do ex-ministro em reconhecendo, ainda que timidamente, o erro em que incorreu ao servir a um governo que representa o que de mais retrógrado existe no pensamento político. A luta contra o avanço do fascismo exige a formação de uma frente, mais do que ampla, na qual sejam acolhidas as opiniões de quantos, no país, conseguem pensar sem peias. Não se há de incorrer no erro primário de priorizar preferências políticas individuais ou partidárias. Não. Há um inimigo comum da democracia e quem por esta tem apreço está no dever de colocar sua defesa como objetivo primacial.
Disse o doutor Moro em outro tópico: “Manipular a opinião pública, estimulando ódio e divisão entre a população é péssimo. Temos mais coisas em comum do que divergências. Democracia é tolerância e entendimento”. Concordo. O comportamento de Bolsonaro tem sido intolerável. Vi-o na televisão, destilando uma fúria autêntica, a esbravejar que “ninguém” lhe tomaria o celular. Referia-se o bufão a uma notícia de que haveria possibilidade de emissão de ordem judicial para apreensão do aparelho. Não existiu tal mandamento. Tivesse existido, minha parca inteligência não me permite imaginar como ele (ou qualquer pessoa) se poderia furtar ao cumprimento. Fazê-lo, seria provocar rachadura irrecuperável no alicerce em que se assenta o Estado Democrático de Direito.
Estarrece-me ver fotografias em que se exibem pessoas ostentando faixas do tipo “Intervenção militar no STF”. Isso é de uma tolice abissal. Mas ouvi Bolsonaro dizer que pode praticar essa insensatez e que, para tanto, estaria autorizado pelo artigo 142, da Constituição da República. Tive que ir à fonte para verificar pessoalmente se o legislador constituinte teria praticado uma estupidez desse quilate. Li o tal artigo e aqui o
transcrevo: “Art. 142 – As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ora, um estudante de direito, matriculado no primeiro período de um curso desses à distância, não cometeria a burrice de dar uma interpretação dessa ordem ao dispositivo. Por esse estapafúrdio raciocínio dos juristas bolsonarianos, o presidente do Supremo Tribunal Federal poderia convocar as Forças Armadas para depor o Chefe do Executivo. Já se vê que, pensar assim, só pode ser brincadeira de mau gosto ou asnice pura e simples. Ou, numa terceira e última opção, má fé.
Inclino-me pela última. O propósito golpista de Bolsonaro está mais do que declarado e juramentado. Não consegue ele se conformar com o fato de ter que governar o país sob o controle dos mecanismos constitucionalmente estabelecidos. É muito pouco para a sua megalomania. Sonha com o momento em que, ornado por manto e coroa e portando um fuzil, possa se dirigir aos súditos com a mesma arrogância de Calígula na Roma imperial. Para isso, já deu ele um passo muito importante: conseguiu o seu Incitatus e, montado no outro quadrúpede, desfilou pelas ruas da capital.
Não há mais espaço nem tempo para tergiversações, principalmente agora que o general Mourão, até então tido o “bonzinho”, mostrou as garras e se declarou abertamente a favor da ferocidade e da repressão violenta. É farinha do mesmo saco. A união de todos contra o fascismo é um imperativo de bom senso. Por isso, até o doutor Moro se quiser integrar a Frente Ampla, há de merecer boas-vindas. Espera-se apenas que ele seja coerente com o que apregoou em seu artigo jornalístico: “Dentro do modelo do estado de direito o governo é de leis, não do arbítrio do governante ou de interesses especiais”. Temos que ir à luta. A Pátria exige.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])