Em mais de meio século de advocacia criminal, depararam-se-me as mais diversas acusações da prática de crimes contra o patrimônio. O ladrão-assassino geralmente é abjeto. Sem nenhuma consideração com a vida humana, elimina a vítima para subtrair a coisa cujo valor sempre está longe de justificar a intensidade da violência; ou, o que vem a dar no mesmo, mata para assegurar que não se lhe perturbe a possa da coisa subtraída. É o latrocínio.
No outro extremo, temos o chamado furto famélico. Na literatura universal, o caso mais famoso é o de Jean Valjean, em “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Faminto, numa sociedade implacável, Valjean furta um pão, o que lhe acarreta uma condenação bem típica do direito penal do terror e, pior, a estigmatização para toda a vida, traduzida na ferrenha perseguição feita pelo inspetor Javert. No cinema, o personagem foi imortalizado pelo francês Jean Gabin.
Há também lugar para manifestações artísticas. Na punga, o ator revela uma habilidade quase circense. Sua vítima nem sequer percebe a ação. Como num passe de mágica, a carteira de dinheiro some do bolso do incauto para reaparecer, íntegra e perfeita, na posse do punguista, que se afasta, lépido e fagueiro, sem incomodar ninguém e longe, muito longe, de qualquer ideia de violência.
Está quase extinta a figura do “ladrão Robin Hood”. Ainda é possível vislumbrá-la em algumas comunidades miseráveis, nas quais surge um líder capaz de operar o furto contra os ricos para distribuir o produto entre os seus iguais. Seria, guardadas as devidas proporções, uma subclasse do furto famélico, eis que, no fundo, o objetivo é o mesmo. Curioso é observar que, para promover a defesa jurídica desse tipo de profissional, é comum ser invocada a sabedoria popular, segundo a qual “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”. No outro extremo está o ladrão do colarinho branco, que consegue a façanha de tirar o pouco dos pobres para engordar sua própria fortuna.
No estelionato, o campo de atuação é quase infinito. Como aqui se cuida de obter vantagem ilícita, induzindo ou mantendo alguém em erro, já se há de ver que uma imaginação atilada encontrará inúmeras formas de artifício, ardil ou outro meio fraudulento, que são os caminhos através dos quais se desenvolve a atividade. Um dado importante a considerar é que o estelionatário tem que ser, necessariamente, simpático e insinuante, sem o que não lhe será possível captar a confiança da vítima em potencial. A cibernética ampliou consideravelmente o mercado de trabalho nessa esteira. No relativo anonimato dos computadores, o estelionatário pode realizar mais facilmente a camuflagem de suas intenções e conduzir o incauto para o seu desiderato, consumando a obtenção da vantagem ilícita.
O elemento fundamental desse crime também pode ser encontrado naquelas letras minúsculas, ilegíveis mesmos, que são inseridas em certos contratos, que de boa-fé assinamos, sem imaginar que, nas tais entrelinhas, estão escondidas armadilhas com imenso potencial de dano. Quando nos damos conta, o dano já se consumou e o estelionatário ainda está armado de um “contrato” que lhe confere supostamente legitimidade jurídica para demandar junto aos tribunais.
Mas há uma coisa de que eu, com certeza, jamais tinha ouvido falar e que não enfrentei mesmo nos mais terríveis pesadelos: o estelionato funerário. Ao invés de reconhecer que, por sua livre e espontânea deliberação, perdeu o controle sobre a pandemia (e até a estimulou), o governo Bolsonaro agora quer camuflar o número de mortos. Parece inacreditável. E é.
A não ser que a matemática tenha perdido sua característica de ciência exata, não dá para imaginar como pode ser diferente, para o governo e para as estatísticas, o número de pessoas que sucumbiram ao vírus. Assim como não existe mulher meio grávida, também não existe um meio morto.
Os arautos oficiais chegam a dizer (só pode ser a pândega absoluta) que estamos no inverno, aqui na região norte e que, por isso, há mais vítimas entre nós. Além de irresponsabilidade, isso é de uma burrice acachapante, apresentando-se mais como um escárnio, diante do cenário macabro que o país contempla.
Além de fascista, esse governo desenvolve um tipo novo de necrofilia. É demais. É abusivo.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])