Menino pobre, extremamente pobre, de família miserável, sem perspectivas na vida, José Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, filho de José de Sousa, jornaleiro, e Maria Piedade, dona de casa no concelho ribatejano da Golegã, Portugal. Camponeses humildes e analfabetos, o avô materno era guardador de porcos, viviam numa casa paupérrima de chão batido.
Além das adversidades sociais de origem, enfrentou outro problema inusitado, tragicômico, na verdade. Seu sobrenome não era Saramago, mas Sousa, do pai. Por erro de registro, ao seu nome verdadeiro – que seria José de Sousa – foi acrescido pelo Cartório o Saramago, fato não observado pelos pais até a apresentação obrigatória da certidão de nascimento para efeito de matrícula no primeiro ano escolar.
Na verdade, segundo o próprio Saramago, tal incidente foi causado pelo funcionário do Cartório, um certo Silvino, que, encontrando-se bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre seu pai) e que, sob os efeitos do álcool e sem que ninguém se tivesse percebido da “onomástica fraude, decidiu por conta e risco acrescentar Saramago ao lacônico José de Sousa que o meu pai pretendia que eu fosse”, segundo relato do próprio escritor em seus diários. O pai teve justa razão de ficar aborrecido com o insólito incidente, visto tal nome “jocoso aludir a uma espécie de erva ruim que nasce espontaneamente nos campos e equivaler a denegrimento da família entre os vizinhos da aldeia natal”.
Sobre estes e alguns outros detalhes da vida do prêmio Nobel de Literatura de 1998, uma escolha quase consensual, praticamente sem levantar nenhuma polêmica nos meios literários internacionais, farei nesta crônica alusões com base no livro SARAMAGO Biografia (2009), de José Marques Lopes, doutor em Literatura Brasileira, pela Faculdade de Letras de Lisboa.
Livro discreto, muito bem escrito, aborda detalhes essenciais da vida do escritor, oferecendo uma visão em preto e branco do convicto comunista, que aderiu a essa corrente político-filosófica desde tenra idade, movido pelo ódio à ditadura fascista que subjugava Portugal e a miséria a que se encontrava submetido o país.
Diferentemente dos tempos de hoje, Portugal nos idos do fascismo lusitano e do autoritarismo disseminado por toda a Europa nos primórdios do nazismo de Hitler, relata o biógrafo Marques Lopes, em 1930, quando o menino José de Sousa Saramago já tinha oito anos, 80% dos portugueses viviam no meio rural, com cerca de 50% da população empregada na agricultura. A maioria “do quase 1,3 milhão dos camponeses empregados na agricultura era constituída por pequeníssimos proprietários ou assalariados que viviam com grande dificuldades”.
A taxa de analfabetismo girava em torno de 61,8%; a de mortalidade infantil situava-se em 143,6 por mil, e a expectativa média de vida era apenas de 47 anos. Efetivamente, uma realidade idêntica a do Brasil no mesmo período. Mas, com as perspectivas econômicas oferecidas pela ex-colônia imensas hordas de “patrícios” para cá imigraram e se tornaram ricos em diversos setores: casas de ferragens, panificadoras e no comércio, principalmente de estivas, atacado e varejo.
Saramago escreveu alguns magistrais romances, sempre de cunho histórico-filosófico; foi membro do Partido Comunista Português desde sempre e até a sua morte, em 18 de junho de 2010, aos 87 anos. Fiel aos princípios marxistas, neles se inspirou para escrever praticamente todos os seus romances, dentre os quais cito o Memorial do convento (1982), O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995), O homem duplicado (2002), A intermitência da morte (2005), os Cadernos de Lanzarote (Volumes I ao V), As pequenas memórias (2006) e a Viagem do elefante (2008).
Era de tal ordem arraigado aos inabaláveis princípios da esquerda radical que recusou um contrato de 500 mil euros, oferecido por um produtor hollywoodiano pelos direitos de adaptação ao cinema da obra “Memorial do convento).
Com a queda do Muro de Berlim e o consequente colapso da União soviética a partir de 1989, Saramago expressou em diversas oportunidades sua imensa frustração com o fim de um regime sob o qual alimentou os mais puros (e radicais) ideais socialistas até o último suspiro. A biografia de Saramago registra em detalhes esses momentos, ao observar: Quem poderia prever que, entre 1989 e 1991, todo o “socialismo real” “se pulverizasse por ação das próprias massas populares descontentes com o que parte importante das classes operárias e populares do Ocidente identificava como sociedade-modelo?”
Os efeitos foram de tal ordem devastadores para a esquerda internacional e em particular para o movimento comunista em todo o mundo, que a social democracia passou a girar “à direita, aplicando políticas de enfraquecimento do do Estado-providência e privatizando como os liberais declarados”. Com efeito, de acordo com Marques Lopes, revelando sentimentos íntimos de Saramago a respeito, “o aparelho mundial centralizado no Kremlim se desfez.
O Partido Comunista Italiano, o maior do mundo ocidental, desapareceu, e a maior parcela alinhou-se com a social democracia. Os que assistiram ao filme alemão “Adeus Lenin”, de 2003, dirigido por Wolfgang Becker, sobre os tempos da guerra-fria haverão certamente de entender melhor o quadro conjuntural que levou o taciturno e pouco comunicativo José Saramago a se fechar ainda mais para o mundo.
Independentemente das frustrações ideológicas, Saramago não pôde reclamar da vida comercial. Após o Nobel de 1998, tornou-se um superstar, fenômeno literário, expoente de vendas de livros tanto em Portugal quanto no exterior. Seus livros que vendiam dois a três mil exemplares nos lançamentos, após o “efeito Nobel” alcançaram números estratosféricos. Entre outubro e dezembro de 1998, no auge do fenômeno, a Editorial Caminho, de Lisboa, teria vendido cerca de 300 mil livros do escritor em Portugal e reeditado todas as obras.
Até 2004, o total de livros vendidos calculadamente chegou a 2,5 milhões só em Portugal, com o “Memorial do convento” alcançando a soma de 400 mil exemplares vendidos (estima-se que haja superado a casa de 1 milhão). Os números das vendas internacionais são astronômicos. Saramago só perde para Paulo Coelho e J. K. Rowling.
Enfim, a biografia do extraordinário José Saramago, para quem conhece e leu seus livros é uma daquelas obras adoráveis. Leitura obrigatória, posso dizer. Agradeço ao meu amigo, poeta Julio Rodrigues Correia, de quem recebi tão precioso presente, que guardo entre os meus preferidos em local incerto e não sabido…(Osíris Silva é Economista, Consultor de Empresas, Escritor e Poeta – [email protected])
NR – Artigo publicado, excepcionalmente, hoje (02/02