Hoje atacou pesado uma saudade da Manaus da minha infância, o pacato lugarejo que nunca se imaginou embrião desta metrópole de agora. Lá se vão décadas do tempo em que as cadeiras nas calçadas eram um hábito familiar, forma de enfrentamento do clima tropical, nas noites úmidas. As conversas se prolongavam sob a luz das estrelas e do eventual luar, porque a energia elétrica era coisa rara. Nas casas, as lamparinas ou as velas eram material prioritário, já que os candeeiros do tipo “Aladim” eram inacessíveis às bolsas da maioria.
Se eu pedir a um neto que me chame um “carro de praça” ele, com certeza, vai ficar com pena do avô, imaginando que teve início o processo de esclerose decorrente da velhice. E terá toda razão de assim pensar, porque o correto atualmente é pedir um “táxi” ou, de forma mais sofisticada, um “uber”. Lembro-me de duas garages que aten-diam aos pedidos dos carros de praça: a Sportiva, com o telefone 1183, e a Avenida, cujo número era 1109. Dá para ver a diferença até na quantidade de dígitos do sistema de telefonia, sendo de lembrar, também, que possuir um telefone era privilégio de poucos. Só para ter uma ideia: era obrigatório declarar a propriedade de uma linha telefônica para o imposto de renda. Parece mentira.
E se eu disser a um jovem que hoje passei pelo Buraco do Pinto? Cuido que ele imaginará alguma obscenidade, deplorando que, na minha idade, esteja eu a co-meter a vulgaridade de usar expressões chulas. Mal sabe ele que o tal Buraco hoje está asfaltado e que nada mais é senão aquela depressão que fica na rua Ramos Ferreira, entre a rua Major Gabriel e avenida Joaquim Nabuco. Sempre foi um buraco, naquela época sem nenhum asfalto. Buraco mesmo. Por que “do Pinto” não sei explicar e recomendo aos interessados que procurem a professora Etelvina Garcia, profunda conhecedora da história desta nossa cidade.
O Canto do Quintela é mais provável que a juventude conheça pela sua própria localização privilegiada. Por via das dúvidas, esclareço: trata-se do cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco, sendo certo que para saber a origem da denominação serão igualmente necessários os serviços da nossa historiadora. O que já não vai ocorrer se eu falar na Curva da Morte, situada na Cachoeirinha, e cuja denomina-ção, como dá para intuir, decorre do elevado número de acidentes fatais ocorridos no lugar, mesmo tendo em conta o reduzido tráfego de veículos.
Os “banhos” são outra coisa que desapareceram da paisagem urbana de Manaus. E eram deliciosos. Tratava-se apenas dos igarapés nativos que cortavam a cidade
em todos os sentidos e que eram usados para recreação. O Parque 10, por exemplo, era o igarapé do Mindu que o poder público represou e cercou com cimento, proporcionando ao povo uma gigantesca piscina natural.
Mais a jusante, o mesmo igarapé mudava o nome para São Jorge e, ali, onde hoje existem as pontes, proporcionava o prazer de um banho de cachoeira. No seu inexorável caminho para desaguar no Rio Negro, transformava-se no igarapé de São Ra-imundo, em cuja margem esquerda ficava a casa paterna, que me viu nascer e que me abrigou durante toda a infância e juventude.
Imensas saudades. Dos igarapés límpidos e refrescantes ficou apenas a me-mória. O crescimento demográfico cobrou seu preço. A poluição se impôs e, ao invés de buscarmos a despoluição e o salvamento dos igarapés, optamos por aterrá-los. Triste ideia e solução de jerico. Mas Manaus resiste e, apesar de tudo, continua linda.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmail,com)