Catarina, de sete anos, está toda chorosa porque a mãe, ao seu lado, acaba de informar que é dia de cumprir o calendário de vacinação. Medo, por certo, da agulhada ou de seja lá do que estiver presente na imaginação infantil. Não gosto de ver meus netos chorarem por qualquer que seja o pretexto. Eis por que deliberei interferir. Travou-se, então, este diálogo:
– Minha princesinha, a vacina não vai doer nada e ainda tem a vantagem de não deixar que você adoeça.
– Dói, sim, vovô.
– Nada, é tão rápido que você nem sente. Além disso, você sabe o que acontece com as crianças que não se vacinam?
– Você disse que a gente pode ficar doente.
– Isso. Mas tem uma coisa ainda pior.
– O quê, vô?
– Quem não se vacina vira Bolsonaro.
Impressionante a transformação que aconteceu com a pequena. Seus olhos se arregalaram, abraçou o pescoço da mãe e, engolindo o choro, proclamou: Vamos logo, mamãe. Eu gosto de tomar vacina.
Francamente, não tenho certeza de se essa estratégia receberia o endosso profissional da doutora Carla, minha psicóloga clínica. Mas, cá na minha ignorância, confesso que não me veio à ideia a possibilidade de estar causando um grande susto à criança, conquanto esse tenha sido o resultado. Tão monstruosa é a figura do inelegível que deveria eu ter tido a sensatez de saber quem nem os pequeninos estão infensos ao pavor que provoca a só menção ao seu nome.
Como, no final, tudo deu certo, minha consciência se tranquilizou. Catarina recebeu as inoculações devidas, não chorou, afastou a possibilidade de moléstias e, o que é mais importante, livrou-se da ameaça da terrificante metamorfose. Aliás, e por falar nisso, já me chegou aos ouvidos a história do cidadão, terrivelmente religioso, ao qual contaram a mesma lenda da transformação. Decidido, ainda assim, a receber a vacina contra covid-19, fez uma última súplica à simpática enfermeira incumbida da tarefa: Doutora, disseram que eu posso me transformar. Se for verdade, escolha, por favor, uma dose que me torne uma barata. Prefiro a moda kafkiana a virar um perigoso lunático da direita.
É preciso ser idiota em grau extremado para ter acreditado nas balelas bolsonaristas, quando o infeliz, desrespeitando o cargo de presidente da República, advertia que a vacina anticovid poderia levar a pessoa a virar jacaré. Essa burrice, além de ser tola por si mesmo, não guarda nem a virtude da originalidade. É que, já no início do século vinte, ocorreu fato semelhante. Com o surto de varíola, o governo fez intensa propaganda pela vacinação em massa. Pois muito que bem. Como o remédio era preparado a partir do organismo de boi, a direita (sempre ela) daquela época espalhou que quem se vacinasse começaria a apresentar características bovinas. Foi um deus-nos-acuda. Instalou-se uma verdadeira revolta popular no Rio de Janeiro, a muito custo contida. Tudo em nome da mais santa e absoluta ignorância. Ouso, aliás, reformular o dito popular: para mim, é a ignorância, e não a preguiça, a mãe de todos os males.
Sei que vai levar tempo para varrermos do país todos os resquícios da estupidez. Para ser sincero, nem sei mesmo se vai ser possível conseguir uma assepsia completa. Quem acredita que a terra é plana, invoca disco voador e canta o hino nacional para pneu dificilmente será recuperável para a normalidade. Não importa. Os que amam o Brasil temos o dever de fazer frente cerrada ao negacionismo, ao neofascismo e aos órfãos da ditadura.
Assim como a pequena Catarina fugiu às léguas da ideia de virar o inelegível, vamos todos ficar bem distantes da possibilidade de reimplantar os tempos de chumbo. Ninguém merece tamanha infelicidade.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor, Poeta – [email protected])