Pois não é que estou encarando os oitenta e um anos? Parece que ainda ontem eu atravessava a Praça da Saudade para chegar ao grupo escolar Princesa Isabel, onde dona Olga Rocha esbanjava paciência para nos ensinar as coisas primárias do mundo. Com não mais que nove de idade, já tinha eu ouvido da bondosa professora que a Terra é redonda. Que falta ela está fazendo hoje na Comissão de Educação da Câmara Federal!
Depois do grupo, foi a vez do Instituto de Educação. Só fiz subir as escadas, não sem antes ter que passar no exame de admissão. Era uma espécie de vestibular, sem o qual não se podia ter acesso ao nível secundário. O IEA só fez confirmar a excelência da escola pública de então. O professor João Chrisóstomo de Oliveira me abriu a cortina dos mistérios que envolvem a língua portuguesa. A partir de suas aulas e com o apoio do meu pai, outro filólogo da mais alta qualidade, foi-me possível estabelecer intimidade com os meandros da gramática e da sintaxe do nosso idioma. O professor Miguel Duarte nos transportava para a Roma antiga, martelando-nos a cabeça com as declinações do latim. Até de canto orfeônico tive aulas. Eram ministradas pela professora e diretora Lila Borges de Sá.
No Colégio Estadual do Amazonas, o curso colegial. Optei pelo clássico, já que o científico me parecia intransponível com as suas matemáticas, físicas e químicas. É certo que também tínhamos aulas dessas matérias; mas com muito menos intensidade e profundidade. Estas ficavam reservadas para o latim e para a literatura (nacional e estrangeira). O professor Agenor Ferreira Lima era implacável ao cobrar os ensinamentos que transmitia da língua de Cícero. Por outro lado, o professor Farias de Carvalho, passeando bem à vontade pelos jardins da literatura brasileira, vez por outra nos brindava com a declamação de seu poema “Meu canto novo”. Era um deslumbramento.
Finalmente, a faculdade. O vestibular em si já era um “tour de force”. Os cinco anos do bacharelado se arrastaram modorrentos para apreender todos os princípios de uma ordem jurídica elitista e voltada para a sustentação dos privilégios da classe dominante. O que, de nenhuma forma, põe em xeque a competência e a excelência dos professores. Ou alguém pode duvidar de que foi um privilégio assistir às aulas do professor Samuel Benchimol? Impossível não citar os professores João Ricardo de Araújo Lima, Adriano de Queiroz, Lúcio Rezende, Ernesto Roessing e José Lindoso. Todos da melhor qualidade.
Quando pus as mãos no diploma, já os militares tinham deposto o presidente da República e assaltado o poder. Essa tragédia aconteceu quando eu tinha
vinte e um anos e frequentava a quarta série da faculdade. Dá para imaginar que não foram muito cômodos os terrenos que pisei no início do exercício profissional. Fazer concurso público (para a magistratura, por exemplo) era impensável. O tal de SNI não permitia de jeito nenhum. Mas sobrevivi. No tribunal do júri encontrei uma espécie de cadinho onde pude cultivar a semente da busca pela justiça, sem preconceitos. Ali, no tribunal do povo, era possível entrar pela madrugada clamando aos jurados que pusessem a vida real acima das estreitas normas jurídicas. As mais das vezes, os vereditos eram proferidos dando prevalência ao bom senso, em detrimento de um direito enclausurado e distante da realidade, que é o pulsar da vida no seu cotidiano.
Hoje estou velho. Felizmente a decrepitude ainda não me enlaçou. Mas as saudades são muitas. Da minha turma, formada em 1965, ao que me consta, restam, além de mim, meu querido irmão Alfredo Moacyr Cabral, a única representante do sexo feminino, a doutora Marlene Perez Sobral, o doutor Jessé Pereira da Rocha, amigo bissexto, cujo reencontro é sempre uma alegria, e o doutor Gaitano Antonácio. Os outros partiram para a “voluptuosidade do nada”. E não foram só eles. Nos corredores da vida, já perdi amigos queridos como Jorge de Rezende Sobrinho, Mário Bezerra de Araújo, Francisco Rezende Cavalcante, Luís Bezerra de Menezes. Há mais, muito mais, inclusive alguns vitimados pela fúria genocida daquele mentecapto que comandava o país, ao tempo da epidemia.
Sei que estou na sala de espera do gabinete da indesejável. Ela não me amedronta. Tenho uma família feliz e é na minha companheira, nos meus filhos e netos que busco alento para caminhar o restante da estrada. Não compartilho a ideia dos que, pretensiosamente, dizem não ter nada de que se arrepender. Eu tenho. Como é que eu poderia pretender não ter cometido nenhum erro ao longo de oito décadas? Óbvio que cometi. Não os cometer seria coisa para santos ou idiotas. Hoje são eles irremediáveis, mas, como são também imprescritíveis para a consciência, registro o pedido de desculpas a quantos tenham sido atingidos pelas consequências dos meus equívocos. Só posso afiançar que não foram frutos da maldade.
Como ainda me é possível, vou comemorar com poucos, nestes incluindo o Red Label e o meu cachimbo.
P.S. – Disseram-me que Bolsonaro também nasceu num 21 de março. Ainda bem que os horóscopos não funcionam, porque me apavora a simples ideia de ter uma personalidade parecida com a dessa coisa.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])