Nas regras de trânsito, há uma placa redonda com a letra “E” em cor preta, cortada por uma faixa diagonal vermelha. O símbolo indica que é proibido estacionar naquele local. O bonitão vem, para o carro bem ao lado do poste que contém a advertência, salta e vai tranquilamente às compras ou a outras atividades menos cotadas. Assim mesmo, com uma singeleza enternecedora, na certeza de que a proibição a ele não diz respeito, já que, muito atarefado, não se pode preocupar com nonadas. Afinal, raciocina o herói, sua condição especial, de pessoa grada na sociedade, há de funcionar como escudo contra qualquer desavisado que pretenda admoestá-lo.
Houve um tempo em que isso era qualificado como “falta de educação cívica”. Não sei nem se há necessidade de adjetivar a expressão, mas que a atitude traduz uma completa ausência de educação de todo tipo, lá isso é verdade. E de noções básicas de cidadania. A convivência social não se estabelece em bases harmônicas se cada indivíduo se considerar exceção às regras comuns.
Quer ver outro exemplo, ainda tomando como pano de fundo o tráfico de veículos? Vamos lá: qualquer infeliz sabe que, salvo situações excepcionais e expressa permissão da autoridade, é vedado parar ou estacionar o veículo em fila dupla. Em tripla, nem se fala. Pois bem: o sujeito para em fila dupla, desliga o carro, aciona o pisca-alerta e vai embora com uma tranquilidade de fazer inveja a um monge. Acho que estou cientificamente desatualizado. Um pândego que costuma agir dessa forma, já me deu uma explicação arrasadora: como o sinal de alerta está funcionando, os outros motoristas hão de considerar que é como se o carro do sabido ali não estivesse e podem passar sem nenhum problema. Já se vê que é um processo revolucionário de desmaterialização.
A cena também é comum na frente de escolas, principalmente daquelas destinadas ao maternal e ao jardim. Madames enfeitadas e perfumadas, com justa razão preocupadas com o bem-estar de seus pimpolhos e ao fito de não se atrasarem para a academia de ginástica, largam os veículos no meio da rua, vão entregar as respectivas crias aos monitores do colégio e voltam como se estivessem desfilando nas passarelas mais afamadas da moda.
Tudo falta de cidadania, em cujo conceito básico está o respeito pelo direito alheio. Em outro plano, uma dessas senhoras, num caixa eletrônico de banco, é uma tragédia para quem teve a infelicidade de entrar na fila depois dela. Ela tira os óculos escuros, abre uma bolsa gigantesca e dela saca o estojo para acondicionar o objeto. Superada essa preliminar, de outro estojo surgem os óculos de leitura. Com estes bem ajustados no lugar devido, inicia-se a busca pelo cartão a ser usado na máquina, coisa que
não é tão simples quanto parece. Primeiro, há que lembrar em qual das cinco bolsas menores, que a maior comporta, está o cartão. Ei-lo que surge, brotando de um emaranhado de quinquilharias em que os produtos de maquiagem e os pentes têm lugar de destaque. Mas a madame não tem certeza de se aquele é o cartão adequado para a época. Por isso, ela o insere e dá os comandos para a obtenção do saldo. Com este em mão, ela decide que lhe é mais conveniente o uso de outro cartão e todo o mecanismo de busca se reinicia até que, afinal, depois de mais de trinta minutos, a boa senhora consegue realizar seu objetivo. Arrumadas todas as suas tralhas, com os óculos de sol de volta às origens, sai ela lépida e fagueira, não sem um educado cumprimento às vítimas de sua peripécia: “Tenham um bom dia”. Como se fosse possível.
Voltando ao trânsito, indiscutivelmente o melhor cenário para essas ações contra a cidadania, é preciso concluir dando a vez aos pedestres, alguns dos quais fazem questão de concorrer em igualdade de condições com motoristas mal-educados. O camarada está a não mais de dez metros da passarela que atravessa a avenida de intenso tráfego. Usá-la? Claro que não. Dá muito trabalho subir.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])