
Tem sido recorrente o último discurso inventado pela direita brasileira. Reproduz nas redes sociais uma suposta estranheza com o fato de pessoas que foram beneficiadas pela anistia de 1979 se manifestarem agora contra ideia similar concebida para beneficiar o já condenado Bolsonaro. Vemo-nos outra vez diante da dúvida: ignorância ou má-fé. Ou, o que é pior, ambas atuando em estreita simbiose, ao fito de tentar dar suporte ao insustentável.
É indispensável mergulhar na História para poder colocar corretamente as coisas dentro de uma perspectiva realista. Vamos lá. Em 1964, os militares deram um golpe de estado e depuseram o presidente da República, que exercia legitimamente suas funções. Implantou-se então uma ditadura de características nazifascistas, bem ao modo do que era comum na época, a partir de modelo criado e divulgado pelos Estados Unidos da América, através de organismos com a CIA. Lembremo-nos de que estávamos em plena guerra fria. A palavra “comunismo” causava pânico e terror em quantos não viam outra coisa além de seus próprios umbigos.
Vai daí que a ditadura optou pela implantação do terror político. Os adversários, reais ou hipotéticos do regime, foram colocados na lista negra e sujeitos à perseguição mais desabrida que já se conheceu. Vieram os exílios, as prisões, os assassinatos e a tortura. Inúmeros brasileiros foram afastados de sua pátria, enquanto outros se submeteram a tratamento cruel. O pau-de-arara era a forma mais amena de tratar os insatisfeitos. Mulheres foram estupradas em celas, onde eram obrigados a permanecer na companhia de serpentes. Incontável também é o número dos que simplesmente desapareceram. De helicópteros, jogavam-se vivos ou cadáveres no meio do oceano Atlântico. Até hoje, por exemplo, não se sabe o paradeiro de nosso conterrâneo Thomás Meireles. A paranoia era tão grande que se implantou a pena de morte para alguns crimes ditos contra a segurança nacional. O judiciário era impotente ou simplesmente impedido de se manifestar, como ocorreu com as decisões baseadas no AI-5.
Os descontentes lutaram contra o sistema, cada um ou cada grupo a seu modo e com os meios de que podiam dispor. A intelectualidade se refugiava em publicações como “O Pasquim”, que não poupava o governo de ironia e deboche implacáveis. Uns poucos optaram pela luta armada ou por táticas de guerrilha. Eram todos, sem exceção, tidos como criminosos aos olhos cruéis da ditadura.
Mas o regime se desgastou. Nem poderia ser de outra forma. Assim é que, seis anos antes de sua definitiva extinção, a pressão popular levou à aprovação da anistia para aqueles que simplesmente tinham soltado seus gritos pela liberdade e pela
democracia. Mas é curioso e importante observar que os então donos do poder tiveram a precaução de se auto proteger, de tal forma que a anistia acabou por beneficiar torturados e torturadores. Escandalosa estupidez.
Comparemos esse quadro com os dias atuais. Desde a redemocratização, em 1985, a República leva vida tranquila e serena, principalmente depois de promulgada a Constituição burguesa de 1988. As instituições funcionaram com pacata normalidade ao longo desses quarenta anos. Tanto estava tudo normal que se viu ser eleito para a Presidência um alucinado que nada fez de produtivo em sua vida pública e que (é sintomático) defendia a tortura e a ditadura. E mais importante: cumpriu integralmente o mandato que lhe foi outorgado, sem “impeachment” e sem maiores transtornos.
Acontece que as mentes perturbadas não se podem conciliar com o que é normal. Deu-se então que, assim eleito, o líder da facção começou a alimentar sonhos com a perpetuação no poder. Temos que lhe reconhecer a sinceridade: jamais escondeu que não se submeteria às regras estabelecidas se os próximos resultados eleitorais lhe fossem adversos. Ficou claro isso naquela famosa reunião ministerial de 2020.
Teve começo a trama, cuja intensificação se deu com o resultado da manifestação popular na eleição presidencial de 2022. Derrotado, Bolsonaro conspirou criando uma organização criminosa em a qual, na qualidade de chefe, buscava formas de desfazer a voz das urnas, depondo o presidente eleito, retomando o poder e implantando nova ditadura. Cuidou-se até de matar eminentes figuras nacionais, como o próprio chefe de estado, seu vice e ministros da Suprema Corte. Quem não se lembra do “punhal verde e amarelo”? E do 8 de janeiro?
Sintetizemos: em 1979, deu-se anistia (e só a eles deveria ter sido dada) a quantos derramaram seu sangue e seu suor para restaurar a democracia. Agora, querem anistia precisamente para quem tramou contra a democracia, buscando desfazê-la e levar o país a outro mergulho no autoritarismo. Não se trata, portanto, de dois pesos e duas medidas. Simplesmente é fato que a água não se mistura com o azeite. Ou será que vão querer anistiar também os ministros do Supremo responsáveis pela condenação dos membros da organização criminosa?
Por tudo isso, faço entusiasticamente eco ao clamor popular: anistia é o cacete.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])-04.10.25