
Revendo meus arquivos, encontrei um exemplar de PLACAR, edição número 250, de 10 de janeiro de 1975, época em que eu exercia a prazerosa função de correspondente/colaborador da conceituada revista de circulação nacional. Deparo-me com uma matéria de minha autoria destacando a trajetória do venerando árbitro José Pereira Serra, à época com 57 anos, 1.400 atuações e cem expulsões. Registrei naquela oportunidade que Serra tinha 27 anos de profissão e aventura, já havia sofrido ordem de prisão, catimbado pelos igarapés, mas era também um dos mais respeitados do Amazonas. Para relembrar, transcrevo o texto:
Ele tem 57 anos (tinha na época) e é carpinteiro respeitado. É também o mais velho juiz de futebol do Amazonas – e do Brasil. José Pereira Serra, apitando entre igarapés e pororocas, juntou história para contar.
Uma foi assim: jogavam no Parque Amazonense o Nacional de Manaus e o Maranhão Atlético Clube. Mário Santos era o juiz, José o bandeirinha. Nas arquibancadas, Plínio Coelho, governador do Estado e presidente do Nacional. O zero a zero durava demais e o senhor governador, que já não gostaria de um empate, não admitia uma derrota do seu clube.
O Nacional arranca, vai a frente – é gol. Mário Santos anula. Aparece então um gaiato para soprar no ouvido de Plínio Coelho que o culpado da anulação é o bandeirinha. Briga, confusão. O governador pisa o gramado. Um segundo gaiato ataca: Serra teria xingado Plínio Coelho.
-Eu não era nem doido, sabendo que o homem poderia me mandar para o xaxado.
Doido estava o governador – de raiva. Baixou o decreto:
-Prendam o homem.
Sorte de José que o comandante da polícia Militar, Alfredo Barbosa Filho era técnico do Nacional e amigo do bandeirinha. Maneirou, é claro.
Mais tarde, em 1964, Plínio Coelho também seria retirado de campo. Foi cassado, mas já é outra história.
José Pereira Serra é um homem humilde. No Departamento de Estradas de Rodagem, onde executa suas carpintarias, é respeitado pelos colegas. E admirado pela extraordinária resistência física. Só que tem outras virtudes – se não fosse muito vivo, muito observador, jamais teria chegado onde chegou.
Os pais pensavam mundos e fundos para ele. Não deu. Ficou só no curso da Escola de Aprendiz de Artífice, que virou Escola Técnica Federal.
– Foi pouco, mas serviu muito – lembra José. – Antes eu sustentava a família só com a minha profissão. Por sinal, sempre gostei da profissão de carpinteiro. Fora daí, o melhor mesmo é ser juiz.
De bola ele sempre entendeu um pouco. Passou pelo Satélite, Santos Dumont, Bangu, Matinha, Estrela do Norte e, finalmente, pelo Independência. E aí pendurou as chuteiras.
Em 1947, depois de brincar – a sério – de juiz pelos gramados suburbanos, teve sua grande chance, ao apitar com classe um jogo oficial entre Rio Branco e Coríntians. Saiu-se tão bem que foi convidado a fazer parte do quadro de árbitros da Federação Amazonense de Desportos Atléticos. Foi tocando o barco e finalmente realizou – suando frio – o maior sonho: dirigir um clássico Rio-Nal, em 1962. Resultado? Nem se lembra, o que é natural:
– Cheguei a tremer porque afinal um clássico é um clássico. Mas deu muita sorte. Tudo saiu muito legal, ninguém reclamou.
O crioulo forte nascido em setembro de 1917 já apitou 1400 jogos, já expulsou mais de cem jogadores. De vez em quando erra. Mas confessa.
– Certa vez eu apitava um jogo entre Rio Negro e Nacional, pelo campeonato de juvenis. Na hora em que um atacante do Nacional chutou contra o gol, a bola foi bater no peito de um zagueiro do Rio Negro. E eu apitei sem querer. Mas não houve pênalti. Acontece que eu havia apitado e tinha que dar alguma coisa. E dei Pênalti mesmo. O Nacional faturou e minha mãe nesse dia, coitadinha, sofreu como nunca. Muito folclore como se vê. E alguns triunfos também.
– Fui escalado em 1965 para dirigir o jogo entre Nacional e Clube do Remo, em Belém. Fiz um trabalho muito bom. O Remo venceu por 3 a 1. Aí eu saí do estádio com o maior moral. Todo mundo batia palma, parecia até o Pelé numa decisão de campeonato.
Pai de onze filhos – no mínimo -, bem que José precisava de algo mais do que um salário de carpinteiro. Só não pensava em chegar à presidência do Departamento de Árbitros.
– Aprendi na maior marra. Olhava os jogos, prestava atenção. Depois, comecei a dar minhas apitadas. Aos poucos, fui conseguindo pegar os macetes, fiquei bamba. Embora um pouco baqueado, ainda consigo apitar melhor que muito garoto.
Melhor talvez do que seus filhos Euclides e Rosquildes Serra, a quem ele não cansa de dar conselhos.
– No departamento, não procuro tirar proveito da situação. Escalo os meninos que estão bem. E deixo para mim os jogos de menor importância. No entanto, às vezes apito um clássico para quebrar o galho.
Uma vantagem: José conhece as manhas dos colegas, que praticamente viu nascer.
– Um dos nossos melhores juízes já me deu muito trabalho. Hoje, o Jander Cabral dos Anjos não admite indisciplina, mas quando jogava pelo Olympico era catimbeiro que dava dó. Era preciso muita paciência com ele – se a gente não levasse com jeito, o Jander ia muito mais cedo para o chuveiro. Em catimbas, José também é mestre. Vejam:
– Ano passado, decisão do intermunicipal, jogavam as seleções de Itacoatiara e Parintins, em Itacoatiara. Os dirigentes brigavam muito pela escolha do juiz. A escolha seria entre mim e mais dois. Só que nenhum dos dois tinha muita condição para apitar o jogo. Sugeri então que o nome fosse escolhido por sorteio.
José mesmo tomou todas as providências para o sorteio: cortou um papel em três pedaços, colocou-os numa urna improvisada. Retirado o primeiro papel, surgiu o nome: José Pereira Serra. Mágica fácil – o mesmo nome figurava nos outros dois papeizinhos.
O juiz-carpinteiro pretende largar o apito aos 60 anos. Até lá, vai trabalhando e observando. Sempre firmando opinião sobre os companheiros. Manoel Luiz Bastos ele admira porque “com ele é na base da lei seca: fez palhaçada, vai para a rua na hora”. Armando Marques é o melhor juiz do Brasil e “se dizem que ele gosta de aparecer, isso é problema dele; conhece arbitragem e, inclusive, aprimorei meus conhecimentos com ele”. – Além disso o rapaz é muito alegre fora de campo.
Esta matéria, como relatei no início, foi escrita e publicada em 1975, já decorridos 50 anos. Serra já não está no mundo dos vivos. Mas o seu nome foi imortalizado pelo esporte amazonense. Se recordar é viver, vou continuar recordando.(Nicolau Libório é Procurador de Justiça aposentado, Ex-Delegado de Polícia, Jornalista e Radialista.) – 10.10.25