Não se sabe quem inventou a mentira. Também nunca ouvi falar de quem tenha sido o inventor da religião.
Apesar da identidade de causas, os religiosos foram mais diligentes e conseguiram dividir (para multiplicar) o seu gênero em várias espécies, enquanto os mentirosos permaneceram firmes na unidade.
Não há, por isso, templos, igrejas ou mesquitas para o culto da mentira. Se houvesse – e aí haveria também toda a hierarquia decorrente – seu Bira teria sido cardeal. Papa não digo, que lhe faltava aquela noção da inutilidade absoluta, tão a gosto, por exemplo, da família real inglesa.
Seu Bira mentia por necessidade orgânica. Era como respirar, comer e reproduzir. Seu Bira era mentiroso.
Morando na capital há muitos anos, no mesmo bairro onde habitava o Sr. Travassos, seu Bira não esquecia o interior em que nascera e se criara. E suas histórias começavam com a marca registrada: “Lá no interior onde eu nasci…”. Depois desse era uma vez o ouvinte já estava certo de que o cardeal ia entoar a homilia mais deslavadamente inverídica, a um tempo ingênuo e grotesca.
Seu Bira já tinha sido comido por onça.
Deu-se que, caçando um desses felinos, Seu Bira o encurralou no interior de uma caverna, quando, às suas costas, um esturro monumental se fez ouvir. Era o parceiro da onça acuada que, em socorro da companheira, vedava a única saída do lugar.
O espectador, no auge do suspense, não conteve a pergunta:
— E aí, o que aconteceu?
Seu Bira respondeu com outra pergunta, na maior naturalidade:
— E não me comeram?
Sexta-feira à noite, era infalível o jogo de dominó na calçada da casa do seu Américo, português que preferiu usar o barro para fins mais nobres do que modelar a humanidade. Do seu sopro saiu dinheiro. Era o rico das redondezas.
Os jogadores eram uma fauna variada, todos com um ponto em comum: queriam ser parceiros do anfitrião, o que poderia compensar a pouca habilidade do lusitano no manejo das pedras e ainda render um ou outro favor das burras sempre abarrotadas, mas muito bem trancadas.
Seu Bira, naquela noite, não lograra ainda o privilégio e teve que se contentar em jogar com seu Raimundo, um taberneiro que vendia fiado e, com as poucas latas de conservas que conseguia manter nas prateleiras, ia repartindo a miséria com seus vizinhos, a maioria sempre esperando o sempre atrasado salário de funcionário público.
— Quinze, cantou o seu Bira.
— Setenta e dominó de quarenta e cinco, berrou seu Elias, jogando quina e branco e batendo com a carroça de quina, satisfeito por poder apertar a mão do parceiro rico, em comemoração à vitória.
— Grande jogada, comentou seu Bira que, apesar da humilhante derrota, não podia desfeitear o mecenas. Só não foi maior do que uma cobra que eu vi quando era criança.
— Não me diga, seu Bira, cutucou seu Raimundo, gozador inveterado.
— Pois é, seu Raimundo, lá no interior onde eu nasci passou uma cobra tão grande, mas tão grande que o rastro dela parecia o leito de um rio seco.
Com a maior seriedade do planeta, seu Raimundo contra-atacou:
— Isso não é nada, seu Bira, lá no interior onde eu nasci tinha uma árvore tão grande, mas tão grande que os lenhadores que foram derrubá-la não conseguiam um ouvir o barulho do machado do outro, batendo em lados contrários do monstro.
Seu Bira, com um misto de admiração e inveja por ter encontrado concorrente à altura, exigiu um esclarecimento que já antecipava a preocupação ecológica.
— E por que foram derrubar vegetal tão viçoso?(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmail,com)