ARTE E CENSURA – Por Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

Sempre proclamei meu fraco tirocínio para compreender coisas complicadas. Por isso, com certeza, não me foi dado alcançar o verdadeiro objetivo de um projeto apresentado na Câmara Municipal de Manaus que busca, salvo engano, disciplinar a exibição de obras artísticas cujo conteúdo seja pornográfico ou ofensivo a imagens religiosas. Disse a imprensa que o então vereador e hoje senador Plínio Valério, com muita acuidade, formulou a indagação indispensável: quem é que vai dizer quando e por que determinada obra se enquadra em algum desses critérios? É isso aí. E eu, cá na minha insignificância, ouso acrescentar: ainda que existisse alguém com essa capacidade ou atribuição, não passaria de um reles e execrável censor.

Não é de hoje que o falso pudor lança dardos venenosos contra a razão e a estética. Já macularam as pinturas da Capela Sixtina, ao argumento de que a nudez humana não deve ser exibida. Mas quem, e em nome de que, foi capaz de formular tamanho despautério? Michelangelo e Da Vinci não concordariam com isso e haveriam de chorar lágrimas amargas se a censura deliberasse lançar um pudico lençol sobre os seus trabalhos mais importantes e famosos. É certo que os fundamentalistas islâmicos insistem em empacotar suas mulheres com roupas horrendas, obrigando-as ao uso da burca. Em alguns casos até que fazem um favor porque há feiuras que não devem mesmo ser expostas, quando nada por uma questão de piedade. Mesmo assim, deveria ficar a critério de cada um a forma como se apresenta, correndo por sua conta e risco o advento do aplauso ou do apupo. Afinal de contas, é lugar comum a assertiva de que existe gosto para tudo.

Lembro-me de que, ainda no curso clássico, no Colégio Estadual, o professor Farias de Carvalho, poeta e esteta que lecionava literatura, formulou à classe esta pergunta: por que toda arte é subjetiva? Éramos jovens, com não mais que dezessete anos, e a indagação nos pareceu tão insolúvel quanto, a princípio, o foi para Édipo o enigma da esfinge. Recordo que fomos à cata de auxílio junto ao professor Manoel Bessa Filho. Com paciência beneditina, tentou o mestre nos esclarecer sobre postulados básicos de filosofia, sem os quais seria, como ainda é, impossível dar a resposta adequada.

Ficou a lembrança do episódio e ela agora me volta aos borbotões diante do cruel dilema posto à deliberação dos legisladores municipais da minha Manaus. Hoje posso ver que o subjetivismo da arte lhe é intrínseco, inarredável mesmo. Funciona em via de mão dupla porque o artista não pode expressar nada além daquilo que lhe dita a sua própria subjetividade, da mesma forma como o espectador também não pode afastar a sua quando lhe é dado contemplar a produção. Algo mais ou menos assim: expresso o

que sinto e tu, que me vês, me ouves ou me lês, tu também verás, ouvirás ou lerás aquilo que te está no íntimo.

Pode dar-se o caso de o indivíduo não entender nada do que lhe é exibido. Mas isso são outros quinhentos e nada tem a ver com o conteúdo da obra em si mesma. No meu caso particular (advirto que não poso servir de parâmetro para nada), jamais consegui compreender o significado da maioria das pinturas modernistas que contemplei. Na literatura, tenho um exemplo típico: por mais de três vezes iniciei a leitura de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Em uma delas consegui o recorde de avançar até a décima quinta página. Nunca mais tive coragem de fazer nova tentativa e, diante da monumentalidade e do alcance da obra, fui forçado a reconhecer que o defeito não era da sanfona, mas, sim, do sanfoneiro. O meu complexo de inferioridade diante do reconhecimento da minha ignorância só foi amenizado quando li uma entrevista do saudoso Ferreira Goulart em que ele confessava jamais ter conseguido passar da vigésima quinta página daquele livro. Tinha eu companhia ilustre.

Mas, felizmente, nem todos sofrem as minhas limitações. Se a maioria das pessoas pode entender a diferença entre uma sonata de Mozart e um axé, cuido haver suficiente campo para que o povo da minha cidade desfrute das obras de arte que lhe forem exibidas. Quem em tudo vê pornografia, para nada olhe e nenhum incômodo sofrerá. Quem, ao contrário, pensa no sublime, pode sentir extremo deleite.(Felix Valois é Advogado, Professsor, Escritor e Poeta – [email protected])