
Pergunto ao meu raro leitor: o que há de comum entre a Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil e o Congresso Nacional? A tendência, sei, é responder que nada, salvo o fato de que são instituições reconhecidas. Mas uma curiosidade me chamou a atenção e é o ponto que pretendo abordar. Na semana que finda esses três entes jurídicos, sem nenhuma combinação entre si, deliberaram produzir besteiras tão monumentais quanto desnecessárias, ensejando um espetáculo de anomalias, quase tão bem orquestrado como uma peça sinfônica.
A igreja teve um surto inquisitorial, restaurou o tribunal do Santo Ofício e fez cair sobre o padre Júlio Lancelloti a férula da censura mais desabrida, impedindo-lhe o acesso às redes sociais. É monstruosa insensatez. Revelo que, como todos os do meu tempo, nasci católico e fui criado dentro dos preceitos dessa fé. Batismo, crisma e primeira comunhão fizeram parte dos meus tenros anos. Hoje, é claro, abandonei tudo isso. As religiões, todas elas, se me afiguram de gritante inutilidade, com seus apelos sobrenaturais, promessas de paraíso e ameaças de inferno. Tenho mesmo para mim que a maior infelicidade da humana espécie ocorreu quando um longínquo ancestral, com medo de trovão e ignorante, resolveu criar um mítico ser superior, supostamente responsável por suas angústias. Por que, então, me preocupo com o padre? Ora, pelo que sei, esse sacerdote desenvolve elogiável trabalho humanitário no plano social e suas pregações estão voltadas sempre para valorizar o amor ao próximo. Que mal há nisso? Talvez apenas o despertar da ira das elites econômicas para as quais o lucro é o ser supremo.
A OAB, por seu turno, conseguiu transformar em ridículo picadeiro um simples processo de escolha de nomes para a composição da lista sêxtupla a ser enviada ao Tribunal de Justiça, com vistas à nomeação para o cargo de desembargador. Começou pela mudança das regras às vésperas do pleito. A lei exige que os candidatos tenham pelo menos dez anos de advocacia. Uma resolução casuística e inoportuna do Conselho Federal deliberou que esse tempo deve ser contínuo e contado regressivamente da data da inscrição. De onde foram tirar essa estapafúrdia ideia? Volto ao exemplo que já utilizei em outras oportunidades. Imagine-se um colega com trinta anos de inscrição na OAB e com reconhecida militância na profissão. Por qualquer motivo, inclusive por doença, teve ele que, na última década, se manter afastado por um período de seis meses. É justo eliminá-lo sumariamente da disputa? Tudo brada que não, até porque o que a regra busca é enfatizar a necessidade de experiência profissional e intervalo de meros seis meses não tem o condão de afastar esse dado. O espetáculo circense chegou a tal ponto que um conselheiro federal, isoladamente, deliberou, por sua livre e espontânea vontade, suspender a eleição, que estava marcada para esta sexta-feira, dia 19 de dezembro. O que deveria ser manifestação democrática se converteu num jogo de mesquinhos interesses, onde é possível encontrar de tudo, inclusive gasto excessivo de dinheiro, menos o mínimo de razoabilidade.
No Congresso Nacional a coisa foi, se é possível, pior. Ilustres pais-da-pátria, encastelados na Câmara e no Senado, aprovaram um projeto de lei, dito “da dosimetria”. Buscam, com singeleza e muita sem-vergonhice, praticamente anular as condenações impostas a um grupo de criminosos pelo Supremo Tribunal Federal. De notar que esses malfeitores não foram processados por um banal furto de galinhas. Longe disso. Buscaram insistente e obstinadamente corroer os alicerces do estado democrático de direito, com a deflagração de um golpe de estado que, em síntese, seria a restauração da ditadura imposta ao Brasil nos anos sessenta do último século. Onde estamos e para onde vamos? A restauração do sistema democrático burguês custou vidas humanas e fez nosso país assistir, calado e amordaçado, à prática de torturas que não seriam imaginadas pelo mais perverso inquisidor medieval. Quer-se, agora, passar panos quentes nessa gente cruel e indigna. A condenação de militares e civis pela trama golpista foi o passo mais importante que demos no sentido de nos firmarmos como país civilizado. Um retrocesso, nesse campo, equivale a abrir mão das conquistas que nos custaram sangue, suor e lágrimas. Está o senhor presidente da República na obrigação de vetar o monstrengo. E estão os senhores parlamentares no dever de sustentar o veto, se quiserem manter o mínimo de dignidade diante do povo que os elegeu e remunera. SEM ANISTIA PARA GOLPISTAS.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])-20.12.25










