
O vozeirão e a dicção perfeita tornaram o narrador Carlos Carvalho o preferido de milhares de ouvintes, durante três décadas seguidas. Na Rádio Difusora, onde dedicou parte da sua vida, foi tudo ou quase isso. Era a voz da ORAÇÃO DA MANHÃ, locutor comercial, apresentador do noticioso Jornal da Manhã (fazendo dupla com Paulo Guerra, posição hoje ocupada por Eduardo Silva), apresentador de musicais e, principalmente, narrador esportivo.
O “homem gol”, como ficou conhecido, sempre foi muito eficiente em todas as tarefas. Carlos, após breve experiência no serviço de alto-falante A Voz da Amazônia, chegou à Difusora, que tinha seu estúdio na rua Joaquim Sarmento no início dos anos 1960 e a sua voz privilegiada somente silenciou após ser vencido pelo seu próprio coração, que parou para sempre em junho de 1995.
Lembro que na década de 1970, no clima de fortes emoções do clássico Rio-Nal, com o estádio Vivaldo Lima lotado, surge na arquibancada o fanático chefe da torcida do Nacional, o popular Goiaba, acompanhado de vistosas jovens, vestidas de azul e branco. Carlos, lembrando o famoso apresentador de televisão Chacrinha e suas dançarinas, indagou: serão as Chacretes do Goiaba? Eu, na condição de comentarista, sugeri que as moças fossem tratadas como Goiabetes. Carlos concordou. E, com a sua potente voz e a grande audiência da Difusora, transformou as comandadas de Goiaba numa das principais atrações nos jogos do Nacional.
Lembro, ainda, que já exercendo o cargo de delegado de polícia (de 1978 a 1985) continuei comentando futebol ao lado do saudoso amigo João Braga. No intervalo e no final dos jogos ele, em trocadilho, anunciava: “agora vamos ouvir os comentários técnicos e táticos de Nicolau Libório, o comentarista que prende a sua atenção”.
Como locutor comercial deixou a sua marca. Recordo que no início da década de 1960, as canetas esferográficas ainda não eram tão conhecidas em Manaus. Quase todo mundo fazia uso da caneta tinteiro que, pelo alto preço, não era descartável no primeiro probleminha. Tinha conserto. E a solução poderia ser encontrada na rua Marquês de Santa Cruz, no Médico das Canetas, do comerciante Rivaldo Bandeira de Melo. E a divulgação, na perfeita dicção de Carlos Carvalho, foi realmente marcante: “Médico das Canetas não tem diploma, mas sabe o que faz”.
O “homem gol” foi de uma safra de grandes locutores esportivos. Na sua época surgiram Mário Emiliano, José Augusto Roque da Cunha, Luiz Eduardo Lustosa de Oliveira, Arnaldo Santos, mas ele conseguia ser um pouco diferente porque não era apenas um narrador de jogos. Era um profissional disposto a enfrentar qualquer tipo de missão como, por exemplo, as transmissões dos pleitos eleitorais, a apresentação dos avisos para o interior ou o PARABÉNS A VOCÊ, programa em que os ouvintes, mediante o pagamento de uma pequena taxa, ofertavam melodias para os aniversariantes do dia.
Quando na sua clara e dinâmica narração dos jogos, dizia: “atira para o arco”, era a certeza que o grito de gol viria a seguir. Esse grito poderia ser mais longo se, por acaso, fosse um gol do Rio Negro. Afinal de contas não existe cronista esportivo que não tenha um clube preferido. Se disser que não tem preferência, desconfie. Ou não é do ramo ou é mentiroso.
Em 1970, ainda no início do Vivaldão, estivemos juntos por ocasião do primeiro clássico Rio-Nal no estádio recém pré-inaugurado: Carlos Carvalho narrando, João Bosco Ramos de Lima comentando, eu na reportagem de campo. A voz do amigo Carlos Carvalho registrou os gols de Pedro Hamilton e Anísio para o Rio Negro e Hércules para o Nacional, no jogo que terminou com o resultado favorável ao Rio Negro por dois a um. Quem tiver a curiosidade de ouvir a narração dos gols, basta acessar o google, digitando Carlos Carvalho-Rio-Nal. A qualidade de som não é das melhores, em razão do longo tempo decorrido, mais de meio sáculo, mas nos garante a certeza de que morre o homem, fica a fama. Ficaram os seus exemplos de humildade e de grande capacidade de comunicar. Ele, para demonstrar que não estava nem aí para a concorrência, começou a dizer nas transmissões: a Difusora só dá bola pra você. Você ouvinte da emissora do povo e de Deus.
O seu profissionalismo sempre falou alto. Lembro das muitas e importantes jornadas em que estivemos juntos. Para exemplificar, as transmissões dos jogos do Nacional, pelo Nordeste, pelo Campeonato Nacional, em 1972. Após duas derrotas, em Fortaleza e Recife, Carlos não economizou energias e muito menos garganta para registrar os dois golaços do artilheiro Campos, em Maceió, na vitória do Naça sobre o CRB por dois a um.
A decisão do campeonato amazonense de 1979, para variar entre Rio Negro e Nacional, no Vivaldão, reuniu o maior público em disputas domésticas: 40.193 pagantes. O Nacional ganhou de um a zero e o gol solitário do jogo foi descrito com o entusiasmo de um profissional consciente de que o ouvinte e o torcedor merecem todo respeito. É bom lembrar que ele era assumidamente rionegrino mas, não misturava a sua condição de profissional de cronista com a sua preferência pelo clube da praça da saudade.
Livre de vaidade e ambição, não tinha preocupações com a concorrência. Também jamais sentiu empolgação diante de ofertas generosas. Certa vez ao receber convite para transferir-se para uma emissora de rádio paraense, não titubeou em agradecer, preferindo permanecer em Manaus onde, na época, era reconhecido e admirado pelos muitos fãs.
Carlos Carvalho era autêntico, incorporava a simplicidade, transmitia sinceridade em tudo que fazia ou dizia. E, pelo seu elogiável caráter, conseguia fazer de cada colega um amigo. E assim foi até os seus últimos dias.(Nicolau Libório é Procurador de Justiça aposentado, Ex-Delegado de Polícia, Jornalista e Radialista).08.08.25