O sistema jurídico nacional, envolvido por uma tendência globalizante, proíbe uso e venda de determinadas drogas. Mesmo o cigarro comum não escapa de sua alça de mira. É certo que ainda não foi criminalizado o ato de fumar (ainda bem), mas anda perto disso, tantas e tamanhas são as restrições e constrangimentos impostos aos viciados, como eu. Essa preocupação governamental, que às vezes raia a histeria, bem que se poderia voltar para um fenômeno surgido, pode-se dizer, recentemente. À falta de denominação consagrada, eu o chamaria de “psicose eletrônica” e, arvorando-me à construção de uma base teórica, definiria o conceito como a utilização abusiva dos aparelhos eletrônicos, oriundos da informática, notadamente o telefone celular.
As crianças (e tiro pelas minhas netas) não podem ver uma dessas coisas que sua atenção é imediatamente voltada para uns joguinhos cretinos que são oferecidos a mancheias. E com que habilidade elas se entregam ao divertimento! A felicidade se alia à impressionante rapidez, e lá estão elas passando o dedo na tela com uma versatilidade de fazer inveja a profissionais. Tem de tudo nos tais jogos: gato, coelho, tigre, fada, duende. Só não identifiquei ainda nada que possa ter o mínimo teor educativo. Acho que não vai demorar para aparecer alguma coisa explicando que menina deve usar vestido cor de rosa, enquanto menino há de vestir roupa azul. Será a divulgação estrutural de um modo de pensar de novo tipo, lançado depois que Jesus Cristo foi visto no alto de uma goiabeira, a bom se deliciar com os frutos da árvore.
Torcendo para que o Nazareno tenha equilíbrio suficiente e não sofra um tombo nessa sua aventura goiabal, insisto na questão dos eletrônicos. Entre marmanjos e marmanjas a coisa é mais séria e adquire foros de monomania, tal a intensidade com que os sintomas se manifestam, às claras, sem nenhum pudor. O rapagão e a moçoila se dão as mãos, que o namoro já foi entabulado. E lá se vão a passear, lépidos e fagueiros, cada um com fones atochados nos dois ouvidos, esquecidos do mundo e, o que é pior, da existência de automóveis e caminhões que, se já são perigosos para quem vê e ouve, imagine para quem tem um dos sentidos prejudicado. Mas, qual o quê? Importa é o som legal que está sendo transmitido e o resto que se dane. Mesmo que esse som seja o terrível esguicho de um axé ou o pavoroso e falso lirismo de uma dupla sertaneja. Pensar em Mozart é pecado mortal, punível com as chamas eternas do inferno. Até a MPB parece definitivamente excluída desse circuito.
O mesmo casal se encontra no barzinho. Os fones são tirados dos ouvidos porque é preciso consultar o garçom antes de fazer os pedidos. Superado esse incômodo, o celular volta a demonstrar suas utilidades, enchendo-se as telas de mensagens edificantes, vez que não há porque perder tempo conversando se tudo pode ser dito eletronicamente. Parte do cavalheiro a primeira mensagem: “A gente pode fazer imoralidade hj?” Resposta imediata da lady: “Hj não dá”. Insistência: “Pq?” E a volta: “Pq eu num tô afim, cara”. A decepção se expressa do modo mais gentil possível: “Cê tá é muito careta, mina”. E nessa sublime linguagem de abreviaturas e contrações vai frutificando e se desenvolvendo aquele amor, cuja intensidade não foi sequer pensada pelos amantes de Verona. Afinal, eles não tiveram a felicidade de conhecer o celular. Talvez só por isso tiveram fim tão trágico.
Nos negócios, na política, no lazer, nos esportes, em tudo é possível detectar a onipresença desse aparelhinho que, o que tem de pequeno, tem de insuportável. Já não é possível pagar uma conta pela internet sem que o celular tenha que meter seu bedelho. Não se consegue fazer uma transação comercial sem que as partes cumpram a obrigação de trocar endereços eletrônicos, num ritual assustadoramente macabro. Acho mesmo que foi o celular o culpado por esse imbróglio em que se meteram o Queiroz e o Primeiro Filho, enquanto exerciam a nobre arte a que tão suposta e eficazmente se dedicaram, ao longo de alguns mandatos legislativos.
Tudo pode o celular. Inclusive facilitar a espionagem policial, esta outra praga que ganhou dimensões epidêmicas, ao argumento de que não pode haver limites no combate ao chamado crime organizado. Privacidade é coisa do passado, um obsoletismo que não se deve impor às exigências da modernidade, dinâmica, pulsante, irrefreável. O Grande Irmão sempre pode (eu ia dizendo “há de”) estar escutando sua conversa para, ao depois, deflagrar uma operação de nome bíblico e fazer as delícias dos que anseiam pela repressão, digerindo ódio.
É verdade: o celular pode tudo. Acho que me considerarão saudosista lembrando que o presidente Tancredo Neves sempre recomendou: telefone é para marcar encontro. E não ir. Como seria bom!(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])