Como posso homenagear o Chicão se ainda não consegui digerir a notícia de sua morte?
Ele foi subprocurador geral do Município na época em que fui vice-prefeito e já ali era visível o respeito pela coisa pública com que ele marcava sua atuação. Ao depois, voltamos a estar juntos na Secretaria de Justiça, onde ele, como adjunto, desenvolveu um trabalho hercúleo pela renovação do sistema penitenciário.
Quando assumimos, o caos era quase absoluto. Basta lembrar que dispúnhamos apenas da cadeia pública “Vidal Pessoa” e de um arremedo de prisão semi-aberta, no complexo “Anísio Jobim”. No primeiro desses estabelecimentos acotovelavam-se sempre mais de setecentos presos, num ambiente feito para cento e quatro, quando de sua construção, no início do século passado. Era uma mistura infernal de presos provisórios e condenados, o que, aliado à superpopulação carcerária, inviabilizava qualquer tentativa de dar ares minimamente científicos à execução penal.
De anotar que as mulheres presas ficavam numa espécie de anexo da cadeia masculina, onde também era impossível fazer a divisão com base no tipo de prisão imposta. Digo mesmo, sem medo de errar, que aquele arremedo de penitenciária feminina só funcionava graças à incrível dedicação de sua diretora, a doutora Suely Borges da Cruz.
Pois muito que bem. Esse pandemônio não intimidou em nenhum momento o nosso Chicão. Constituiu ele um corpo de advogados da melhor qualidade e, diariamente, supervisionava pessoalmente o atendimento aos detentos, com o intuito óbvio de, em obtendo a liberdade de alguns, ainda que provisória, diminuir a pressão da excessiva ocupação do sistema.
Era, como dá para perceber, um conjunto de paliativos originados do desejo de bem trabalhar, mas incapazes, como é evidente, de atacar o mal na sua raiz.
Por isso, Chicão foi à luta em outra frente: buscou incessantemente o apoio do governo federal para os projetos de construção de outras unidades prisionais, com o claro objetivo de dotar o Estado do mínimo que fosse para a implantação de um novo sistema. Assim teve início o erguimento do sistema fechado no Anísio Jobim, da penitenciária feminina, no mesmo complexo, e, em local apartado, a unidade de Puraquequara. Foram obras fundamentais para o melhor desempenho do mecanismo carcerário no Estado, inclusive ensejando, tempos depois, a desativação da Vidal Pessoa, inteiramente defasada e sem nenhuma condição de utilização.
Terminado nosso trabalho na Sejusc, Chicão volta para o Ministério Público e eu para o meu escritório de advocacia. Encontrávamo-nos, então, todas as
quintas-feiras no Armando. Ali, na base do uísque, as conversas buscavam resolver todos os problemas do mundo, para o que era indispensável a assessoria de Simão Pessoa, do doutor Santana, do Deocleciano Souza, tudo sob o som da poesia de Ernesto Penafort.
Por duas vezes, Chicão foi conduzido à chefia do Ministério Público Estadual e, em ambas, mostrou uma dedicação invejável, sendo intransigente quanto à disciplina e ao respeito às prerrogativas dos membros da instituição.
Aposentou-se e veio para a advocacia. Disse-me ele que não estava cobrando honorários. Quando lhe perguntei a razão dessa conduta, a resposta foi comovente: acho que tenho que devolver ao meu povo, com o meu trabalho, aquilo que ele me proporcionou, permitindo a obtenção de um grau universitário. Notável.
Pois foi esse cidadão que a pandemia levou. Não estou à altura de lhe prestar as homenagens devidas. Apenas sinto a sua morte com igual intensidade do sofrimento de Iramaia, Fabiana e João Vítor. Mesmo assim, acho que posso humildemente dizer: muito obrigado, doutor Francisco das Chagas Santiago da Cruz, pelo exemplo de vida que você nos deixou.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])