
Os do meu tempo se lembram da “bomba de flit”. Era uma geringonça em tudo semelhante a uma bomba para encher pneu de bicicleta, mas adaptada para outra destinação. Em uma das extremidades havia um depósito cilíndrico, no qual se colocava um líquido, genericamente conhecido como “detefon” que era, então, espargido ao fito de eliminar baratas, formigas e outros insetos cuja existência nem a ciência nem as religiões conseguem justificar. O tal detefon era o nome comercial do DDT que, por sua vez, é a sigla de diclorodifenil tricloretano (segundo o Houaiss), substância que ia fazendo seus estragos no mundo dos rastejantes ou voadores que têm o péssimo habito de invadir residências sem nenhuma cerimônia.
Coisas d’antanho. Da época em que se usava “glostora” no cabelo e em que se podia ouvir um bolero do Trio Los Panchos sem que, pelo meio do caminho, os ouvidos sofressem a agressão de uma dupla sertaneja. Quando a água de colônia Regina era dominante no setor de perfumaria e quando fumar um cigarro não se havia transformado na besta do apocalipse. Tudo superado, tudo esquecido, porque a tecnologia, à frente a cibernética, transferiu essas coisas para o fundo do baú das recordações. A transformação ocorreu até mesmo quanto ao assunto de que me ocupei no início. E não falo apenas dos métodos modernos de dedetização, em que substâncias inodoras são aplicadas através de mecanismos sofisticados. Refiro-me também à possibilidade de matar baratas com balas, sejam elas de fuzil ou de metralhadora.
Não entrei em delírio, meu escasso leitor. Até gostaria de que disso se tratasse e estivesse eu num transe daqueles momentâneos, que afastam a realidade e permitem o ingresso num universo onírico. Infelizmente disso não se trata. Pois não é que o nosso presidente da República, na sua ingente cruzada pela implantação da violência institucionalizada, saiu-se com mais uma pérola? Entende ele que, sendo estabelecida uma excludente de ilicitude para todos os policiais que matarem alguém em um conflito armado, os índices de criminalidade cairão “assustadoramente”. E complementa, de acordo com o jornal O Globo: “Os caras (bandidos) vão morrer na rua igual barata, pô. E tem que ser assim”. Genial, inigualável, absolutamente republicano.
Não houve explicitação, na fala presidencial, de como é que deve ocorrer a morte dos tais bandidos. Acredito haver alguma diferença, ainda que sutil, porque uma simples vista d’olhos pelo dicionário permite verificar que são diversos os tipos de barata, sendo, assim, necessário esclarecer contra qual deles se vai dirigir a ação do policial dedetizador. Há de ser mais fácil alcançar o objetivo se se tratar de uma barata comum,
dessas que apavoram madames e senhoritas quando inesperadamente adentram os banheiros. Têm elas hábitos domésticos e “por nutrirem-se de toda sorte de produtos, contaminam alimentos; têm odor desagradável e tornam-se pragas sérias”. Mas em razão da vulgaridade da espécie, cuido que matar uma delas não contribuirá muito para a classificação do matador no ranking geral dos eliminadores.
Mais sorte, com certeza, terá aquele que conseguir colocar fim à inútil vida de uma barata-cascuda. Trata-se da “Leucophaea maderae” e é um tipo “que pode atingir cerca de quarenta e cinco milímetros de comprimento”, sendo “de distribuição cosmopolita e hábitos domésticos”. É certo que, tendo em vista as dimensões do alvo, não haveria muito mérito na pontaria do atirador. Em compensação, como a cascuda provoca mais medo que sua prima subnutrida, sua eliminação poderá equivaler a uma daquelas sutilezas que distinguem os atletas nos saltos ornamentais, como agora mesmo acabamos de ver nos Jogos Pan Americanos.
Em posição intermediária ficará o dedetizador que lograr atingir fatalmente uma barata-d’água. Estas são “insetos aquáticos, hemípteros, da família dos belostomatídeos, de coloração castanha, pernas posteriores achatadas, próprias para a maturação, e pernas anteriores adaptadas para agarras suas presas”. Na hipótese, é claro, o defensor da ordem exibirá paralelamente habilidades de mergulhador, mas sem possibilidade de chegar ao pódio, uma vez que seu alvo não é tão conhecido da grande massa.
Seria injusto não mencionar que a brigada bolsonarista de dedetizadores poderá ser incumbida de alcançar as baratas-descascadas, aquele “espécime esbranquiçado de barata, logo após a muda, antes da quitinização e escurecimento do tecido cutâneo”. Como esse tipo também é conhecido como barata-noiva, o atirador, em a eliminando, terá prestado serviço relevante, pois impedirá a realização do matrimônio e, por via de consequência, da proliferação.
Não sei, não, mas, cá para mim, tenho que se o nosso presidente persistir nessa escalada de patacoadas verbais, estará ele oscilando perigosamente na tríplice fronteira em que se interligam a pândega, o ridículo e a irresponsabilidade. Caindo em qualquer desses territórios, dá para imaginar como estaremos fritos.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])