DIREITO PURO NÃO EXISTE – Por Felix Valois

Artigos; Advogado Felix Valois(AM)

A ciência do Direito não pode, sob qualquer prisma, pretender ser “pura”. A razão é simples: não existe direito fora das sociedades organizadas e esse caráter social lhe tira a chance da “pureza”. Numa sociedade dividida em classes, as normas jurídicas (o direito posto) revelam a vontade da classe dominante, sendo essa constatação decorrente da lógica mais primária. O aparelho estatal sempre estará assentado nos interesses políticos e ideológicos dos que detêm o poder.

Não se cogita aqui de governos ou do ideário programático das organizações através das quais se movimenta a política partidária. A questão é mais profunda, eis que diz respeito ao arcabouço doutrinário a partir do qual são formuladas as conformações da superestrutura, que, por sua vez, apenas reflete os princípios socioeconômicos em que repousa a infraestrutura social.

Vejamos um exemplo singelo e objetivo: no regime capitalista é impensável que as normas jurídicas permitam a abolição do direito de propriedade. Sem propriedade não pode haver lucro e o sistema gira, como não escaparia nem ao ministro Fux, em torno dessa forma de exploração financeira.

Essa introdução tem o objetivo de permitir outra óbvia constatação: qualquer que seja o sustentáculo político-ideológico do Estado, ele necessariamente estabelecerá mecanismos de proteção aos valores que lhe sejam pertinentes. Vida, honra, propriedade e quejandos recebem, então, a cobertura das normas objetivas, das quais as mais gravosas são as inscritas no direito penal.

Tido como a “ultima ratio”, o direito punitivo só há de ser invocado, para estabelecer a repressão, se e quando falharem todos os instrumentos de conciliação e apaziguamento postos à disposição do aparelho estatal. É de observar que, em criando as normas de direito penal, o legislador é obrigado a elaborar uma valoração dos bens que quer proteger, devendo a punição ser sempre proporcional à ofensa realizada.

Bem por tudo isso, chego ao estarrecimento quando vejo os partidários de Jair Bolsonaro porem em dúvida a atuação e a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao argumento de que se tratou de um “julgamento político”. Mas queriam o quê? Que fosse um julgamento religioso? Apesar da ridicularia supostamente religiosa ensejada pelos malafaianos, disso não se podia tratar.

Ao eleger os bens com suficiente relevância para ingressar na órbita protetiva do direito penal, o nosso legislador incluiu o estado democrático de direito e os seus consectários, aí incluído o normal funcionamento das instituições republicanas. Qual foi a acusação formulada contra os réus? Exatamente a tentativa de transmudar a

normalidade do estado de coisas estabelecido, desvirtuando por completo o panorama político do país.

Vale dizer: nas condições normais de temperatura e pressão, o jogo na democracia burguesa tem regra clara: quem vence uma disputa eleitoral, assume o cargo para o qual foi eleito. Como isso é um fato político, não há como a violação da norma ser encarada como infensa à política. Muito ao contrário, o desenrolar do julgamento deixou evidente que a Suprema Corte estava na obrigação de agir em defesa da normalidade democrática, precisamente o bem jurídico que foi colocado em risco pelas condutas dos acusados.

Importa, neste momento, saber se foram observadas as regras do devido processo legal, como estabelecido na Constituição da República. O órgão competente formulou a acusação e os acusados foram devidamente citados para o oferecimento de defesa. O contraditório e a ampla defesa, que são a essência desse processo, em nenhum momento sofreram qualquer arranhão. Os réus tiveram a assistência técnica de alguns dos melhores advogados do país e a instrução criminal foi feita às claras e sem subterfúgios, inclusive com transmissão televisiva. Note-se: apesar das reiteradas manifestações do chefe da organização criminosa a favor desse tipo de procedimento, ele e seus comparsas jamais foram colocados no pau de arara, nem tiveram que conviver com serpentes em celas escuras e imundas.

Vi que, proclamado o resultado, algumas pessoas desabafaram: “é pouco”. Perdoem-me, mas não é. Mesmo para Bolsonaro, vinte e sete anos de prisão são um fardo considerável, com o qual ele vai ter que fazer conviver sua arrogância. Lembremo-nos, também, de que existem crimes pendentes, como os cometidos na pandemia, a vergonhosa entrega de nossas refinarias por preço de banana para o mundo árabe, além da emblemática questão das joias e do relógio.

“Tudo tem seu tempo certo”, diz a canção. Agora é tempo de louvar a justiça já feita e esperar que nossos juízes continuem firme independentes, ao fito de fazer com que os demais feitos da quadrilha também cheguem aos tribunais.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected]) – 13.09.25