Ela era a responsável pela cantina na velha Faculdade de Direito da Praça dos Remédios. A todos chamava de “doutor”, mesmo a um moleque como eu que, ainda sem ter completado dezoito anos, iniciei o curso no longínquo ano de 1961. Humilde, afável, bondosa e gentil. Era dona Ocridalina da Rocha Freitas, de todos conhecida como dona Idalina, síntese naturalmente imposta e adotada por preguiça ou comodidade. O cafezinho, a tapioca e o bolo de macaxeira faziam a delícia de catedráticos e alunos. Entre estes o fiado era comum, o que decorria da “lisura” quase generalizada imperante entre aqueles espécimes da classe média, todos em busca de um lugar ao sol numa sociedade estratificada e conservadora. O diploma cintilava ao longe, como um Graal, cuja posse deveria significar a redenção. Às vezes deu certo para alguns. Com outros, nem tanto, que certificar a conclusão de um curso nunca foi certeza de correto aprendizado.
Mas ninguém ousava dar um trambique em dona Idalina. Um código de honra não escrito determinava que, ao final do mês, ainda que tendo de pedir dinheiro emprestado, o aluno era obrigado a comparecer ao balcão e saldar a totalidade da dívida acumulada durante o período. E dos bolsos dos paletós, que éramos obrigados a usar, saíam notas e moedas de cruzeiro em quantidade suficiente para honrar o “débito da fome”. Afinal, não o fazendo, o eventual e infeliz caloteiro ficava impedido de realizar novas aquisições. Era a tragédia. Não que isso fosse imposto ou divulgado por dona Idalina. Nem pensar. Era apenas um consenso moral, que circulava de boca em boca, numa pressão bem maior do que a exercida pelas leis e tratados que estávamos tentando aprender.
No meu caso específico, a relação de afeto e respeito com dona Idalina tinha um componente todo especial. Conto o caso. Eu morava no início da Rua Leonardo Malcher, um pouco acima da margem esquerda do igarapé de São Raimundo. Dona Idalina tinha sua casa na Rua Luís Antony, também em sua parte inicial, aquela que está próxima da fronteira com o bairro da Matinha, depois apelidado de Presidente Vargas. Pois muito que bem. Diversas vezes aconteceu de, subindo a Leonardo a caminho da escola, encontrar com dona Idalina na esquina das duas ruas, aquela onde está a igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Seguíamos juntos.
Acontece que, na Avenida Epaminondas, logo depois do bar Balalaika, hoje drogaria, era a parada do “expresso”, como era conhecido um meio de transporte
representado por kombis velhas que faziam o trajeto João Coelho/Joaquim Nabuco. João Coelho era o nome antigo da Avenida Constantino Nery e o carro, seguindo por ela, dobrava no Boulevard Amazonas (também rebatizado como Álvaro Maia), até que, antes do cemitério, tomava o prolongamento da Getúlio Vargas à direita, para alcançar a Joaquim Nabuco, então com duas mãos de direção. Prosseguindo nela, fazia a curva atrás da igreja dos Remédios, indo até a estação, para reiniciar o percurso. Era o ideal para ir à Faculdade.
Mas voltemos à vaca fria. Dona Idalina ficava na parada e eu lhe dizia um “até logo” meio sem jeito. Aí vinha a pergunta: “Doutor, o senhor não vai pegar o expresso”? A confissão era espontânea, até porque traduzia a pura verdade: “Dona Idalina, eu estou (que eufemismo!) sem um tostão”. “Ora, vamos que eu pago a sua passagem”, era a réplica inevitável. E lá ia eu, empaletozado e duro, com livros que não me pertenciam, gozar da generosidade daquela mulher, simples na sua vida e de uma grandeza tão bela.
Era assim dona Idalina. Quando voltei à Faculdade, já como professor (quanta pretensão!), ela continuava na mesma faina. A cantina já não era embaixo da escadaria. Com as reformas de ampliação, tinham-na transferido para um local com entrada pela Rua Miranda Leão, onde o café e os salgados continuavam sendo produzidos com a mesma qualidade d’antanho. Nunca ouvi de dona Idalina uma palavra que fizesse a alusão mais remota aos tempos em que ela, mesmo pobre, me brindava com a sua fraterna generosidade. Muito menos escutei qualquer coisa que pudesse ser interpretada como um pedido de compensação da parte de quem tinha conquistado o Gral. Nada disso. Somente uma vez, muito triste e preocupada, ela me disse que estavam pretendendo fechar a cantina. Nada lhe prometi, até porque não tinha eu nenhum poder de mando. Mas interferi junto ao professor José Russo, então na diretoria, e o projeto, pelo menos ao que me lembro, foi cancelado. Felizmente.
Nunca mais vi dona Idalina. Nem mesmo sei se ela ainda está vivendo e esbanjando sua bondade. Sei que, neste Natal, fui invadido por uma imensa saudade dela. Parafraseando o poeta, só posso dizer: eu, que não creio, peço-lhe que me abençoe, dona Idalina. Sua benção, mais valiosa que a passagem do expresso, há de me permitir continuar crendo que é possível construir uma sociedade solidária, em que a busca pela igualdade de todos estará acima qualquer valor. Muito obrigado, minha saudosa dona Idalina.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])