Nunca ouvi falar de alguém que fosse tão, digamos, bizarro como aquele homem que me foi apresentado há muito tempo em um dos bares da noite de Manaus. Chamavam-no de Travassos, o que, no caso dele, não significava necessariamente que fosse verdadeiro o nome. Não parecia ter compromissos maiores com a realidade e essas convenções sociais não tinham a menor importância no universo em que ele navegava com uma versatilidade invejável.
Ele sempre achou, por exemplo, que Lusíadas era o nome de uma poetisa portuguesa e, mais recentemente, encasquetou que é Olavo Bilac o nome do filósofo responsável pelo arcabouço doutrinário do bolsonarismo. E não adiantava encetar qualquer tentativa de contrariá-lo porque falava tais coisas demonstrando a mesma convicção que o atual presidente revela em relação à tortura como forma de investigação policial. Seus conceitos eram absolutos e pelo menos, ao que consta, sinceros, tanto que não negava elogios à memória do coronel Ulstra.
Tinha o vezo de embaralhar os ditos populares, transformando-os em afirmativas que exigiam do interlocutor uma acurada sensibilidade para perceber o que se escondia por trás do enunciado enigmático. Assim é que, para ele, “a esperança é a única que morre”. Indagado sobre se não seria a “última” ao invés de “única”, a resposta vinha com laivos de furor: “Não, senhor. Todo dia não tem um pobre morrendo de esperança? Então, ela está longe de ser a última”.
Certa vez compareceu a uma palestra sobre o nordeste brasileiro. A palestrante, moça bonita e muito competente na sua área, discorreu, entre outras coisas, sobre a questão da seca que aflige a região desde tempos imemoriais. Demonstrou a cruel combinação de fatores climáticos e geográficos como a causa essencial do problema. O nosso herói a tudo assistiu impassível, mas foi o primeiro a se inscrever para usar da palavra ao final da conferência. Fê-lo, nestes termos: “Meu professor de química sempre me ensinou que a fórmula da água indica ser ela composta de duas moléculas de hidrogênio e uma, de oxigênio. Se assim é – prosseguiu -, não vejo razão para não se resolver o problema de falta d’água no nordeste. É só juntar tantas moléculas de hidrogênio quantas forem necessárias, misturar com a metade de outras de oxigênio (por exemplo: H16O8), e a água vai borbulhar no sertão, mais caudalosa do que no Amazonas”.
O hino nacional na interpretação do Travassos tinha conotações especialíssimas, traduzindo uma criatividade inovadora. Com voz tonitruante, ele
lançava: “Nem temes quem te adora a própria morte”. Só cantava “a imagem do Flamengo resplandece” porque não admitia que fosse o Cruzeiro, um time de segunda classe, a figurar no hino, em lugar do adorado clube de seu coração. E concluía: “Dos filhos deste solo és pai gentil”. A explicação era enfática: “Eu digo o Brasil; não digo a Brasil. É lógico, então, que o Brasil só pode ser pai e não mãe, mesmo nestas épocas em que já não se sabe quem é o quê”.
O antigo Instituto Nacional da Previdência Social tinha sua sigla grafada invariavelmente pelo Travassos como IMPS. Um amigo mais chegado indagou a que título vinha o m. “Ora, então você não aprendeu no curso primário que, antes de “b” e de “p” é obrigatório o uso do “m”, não se admitindo, em nenhuma hipótese, o emprego do “n”? Deveria ter se dedicado mais ao estudo da gramática”.
O herói só tem um pavor na vida. E esse vale por todos, chegando mesmo a enveredar pelos terrenos da patologia. É de comunista. Travassos alia esse pavor a um ódio incontido porque, diz ele, “comunista bom é comunista morto”. Impressionante a narrativa que faz dos hábitos e costumes dos comunas. Segundo ele, na sexta-feira santa, reúne-se a hierarquia maior do partido respectivo. Vestidos à moda satânica, os próceres vermelhos se dedicam a uma orgia homérica, como forma de preparação para o banquete, em que a peça de resistência é cérebro cru de recém-nascidos. Isso, antes de estarem prontos para a invasão do convento que esteja mais à mão e de onde não sairá um padre vivo ou uma freira que não tenha sido estuprada.
Disseram-me que ultimamente Travassos tem manifestado algumas veleidades político-eleitorais, sendo quase certo que em pouco tempo irá enfrentar as urnas. Não me acode nenhum motivo mais sério para duvidar de que terá o mais retumbante êxito, alcançando votação consagradora.
Nota de pesar – Tributo minha mais sincera e profunda homenagem à memória e à irreverência de Joaquim Marinho. O mais amazonense de todos os portugueses do universo se formou comigo, na velha Jaqueira, nos idos de 1965. Libertário, amante da arte e da cultura, Joaquim viveu à frente do seu tempo. Muita saudade, meu colega.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmailcom)