Erudição – Por Felix Valois

Advogado Félix Valois(AM)

Nunca ouvi falar de alguém que fosse tão, digamos, bizarro como aquele homem que me foi apresentado há muito tempo em um dos bares da noite de Manaus. Chamavam-no de Travassos, o que, no caso dele, não significava necessariamente que fosse verdadeiro o nome. Não parecia ter compromissos maiores com a realidade e essas convenções sociais não tinham a menor importância no universo em que ele navegava com uma versatilidade invejável.

Ele sempre achou, por exemplo, que Lusíadas era o nome de uma poetisa portuguesa e, mais recentemente, encasquetou que é Olavo Bilac o nome do filósofo responsável pelo arcabouço doutrinário do bolsonarismo. E não adiantava encetar qualquer tentativa de contrariá-lo porque falava tais coisas demonstrando a mesma convicção que o atual presidente revela em relação à tortura como forma de investigação policial. Seus conceitos eram absolutos e pelo menos, ao que consta, sinceros, tanto que não negava elogios à memória do coronel Ulstra.

Tinha o vezo de embaralhar os ditos populares, transformando-os em afirmativas que exigiam do interlocutor uma acurada sensibilidade para perceber o que se escondia por trás do enunciado enigmático. Assim é que, para ele, “a esperança é a única que morre”. Indagado sobre se não seria a “última” ao invés de “única”, a resposta vinha com laivos de furor: “Não, senhor. Todo dia não tem um pobre morrendo de esperança? Então, ela está longe de ser a última”.

Certa vez compareceu a uma palestra sobre o nordeste brasileiro. A palestrante, moça bonita e muito competente na sua área, discorreu, entre outras coisas, sobre a questão da seca que aflige a região desde tempos imemoriais. Demonstrou a cruel combinação de fatores climáticos e geográficos como a causa essencial do problema. O nosso herói a tudo assistiu impassível, mas foi o primeiro a se inscrever para usar da palavra ao final da conferência. Fê-lo, nestes termos: “Meu professor de química sempre me ensinou que a fórmula da água indica ser ela composta de duas moléculas de hidrogênio e uma, de oxigênio. Se assim é – prosseguiu -, não vejo razão para não se resolver o problema de falta d’água no nordeste. É só juntar tantas moléculas de hidrogênio quantas forem necessárias, misturar com a metade de outras de oxigênio (por exemplo: H16O8), e a água vai borbulhar no sertão, mais caudalosa do que no Amazonas”.

O hino nacional na interpretação do Travassos tinha conotações especialíssimas, traduzindo uma criatividade inovadora. Com voz tonitruante, ele

lançava: “Nem temes quem te adora a própria morte”. Só cantava “a imagem do Flamengo resplandece” porque não admitia que fosse o Cruzeiro, um time de segunda classe, a figurar no hino, em lugar do adorado clube de seu coração. E concluía: “Dos filhos deste solo és pai gentil”. A explicação era enfática: “Eu digo o Brasil; não digo a Brasil. É lógico, então, que o Brasil só pode ser pai e não mãe, mesmo nestas épocas em que já não se sabe quem é o quê”.

O antigo Instituto Nacional da Previdência Social tinha sua sigla grafada invariavelmente pelo Travassos como IMPS. Um amigo mais chegado indagou a que título vinha o m. “Ora, então você não aprendeu no curso primário que, antes de “b” e de “p” é obrigatório o uso do “m”, não se admitindo, em nenhuma hipótese, o emprego do “n”? Deveria ter se dedicado mais ao estudo da gramática”.

O herói só tem um pavor na vida. E esse vale por todos, chegando mesmo a enveredar pelos terrenos da patologia. É de comunista. Travassos alia esse pavor a um ódio incontido porque, diz ele, “comunista bom é comunista morto”. Impressionante a narrativa que faz dos hábitos e costumes dos comunas. Segundo ele, na sexta-feira santa, reúne-se a hierarquia maior do partido respectivo. Vestidos à moda satânica, os próceres vermelhos se dedicam a uma orgia homérica, como forma de preparação para o banquete, em que a peça de resistência é cérebro cru de recém-nascidos. Isso, antes de estarem prontos para a invasão do convento que esteja mais à mão e de onde não sairá um padre vivo ou uma freira que não tenha sido estuprada.

Disseram-me que ultimamente Travassos tem manifestado algumas veleidades político-eleitorais, sendo quase certo que em pouco tempo irá enfrentar as urnas. Não me acode nenhum motivo mais sério para duvidar de que terá o mais retumbante êxito, alcançando votação consagradora.

Nota de pesar – Tributo minha mais sincera e profunda homenagem à memória e à irreverência de Joaquim Marinho. O mais amazonense de todos os portugueses do universo se formou comigo, na velha Jaqueira, nos idos de 1965. Libertário, amante da arte e da cultura, Joaquim viveu à frente do seu tempo. Muita saudade, meu colega.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmailcom)