Bolsonaro decidiu reescrever a História e determinou que os quartéis comemorem, com pompa e circunstância, o golpe de 1964. Camuflou a data, é certo, que o Dia da Mentira nunca foi admitido pelos próceres daquelas bandas. Deverá haver toque de clarim e rufar de tambores. Não me causou mossa a atitude. Ele jamais escondeu sua condição de órfão da ditadura. Assim, nada mais natural que, agora no poder, queira prestar todas as homenagens possíveis à sua falecida e, para ele, saudosa, mãezinha. Além do que, tem o presidente o direito de pensar da maneira que bem entender e se filiar à postura ideológica que lhe seja mais condizente. Está apenas fazendo uso de uma liberdade que o regime por ele endeusado negou aos brasileiros por mais de duas décadas. Simples questão de dialética.
O que pode impressionar na postura presidencial é a sua deplorável futilidade. O país não está navegando em manso lago azul. As crises se repetem nos mais variados campos e o governo decide gastar tempo com uma provocação tola, à semelhança do menino birrento que, a qualquer custo, delibera mostrar que não abre mão de seu ponto de vista. Não carecia disso. Melhor compreender que o Palácio do Planalto não é um quartel e que a comunidade submetida ao seu comando não é composta de subalternos. A hierarquia, nesse mundo mais vasto, não funciona (nem poderia funcionar) como nos ambientes castrenses, onde a voz de comando do superior não admite (e também não poderia admitir) contestação.
Guardadas as devidas proporções, a ordem de Bolsonaro equivale ao comportamento do parlamentar que propõe à apreciação de seus pares um projeto de lei instituindo o Dia do Catador de Latinhas de Alumínio. Inúteis ambos. Governar e legislar envolvem responsabilidades bem maiores, que não se coadunam com o simples expressar de opiniões pessoais. Estas que, por óbvio, são indissociáveis das atitudes de qualquer ser humano, seja ele político ou não, não podem, no caso dos homens públicos, se alçar a uma condição de primazia.
Quer fazer alguma coisa de útil, senhor presidente? Que tal pensar num programa de Estado para a educação no Brasil? Ela, há muito tempo, se encontra em estado de morte clínica, sobrevivendo com a ajuda de aparelhos. Estes, que já não são lá tão eficientes, não terão condições de impedir o óbito que, a permanecerem as coisas como estão, virá a qualquer momento. Não se trata de recomendar este ou aquele livro didático, nem de ordenar que o Hino Nacional seja de execução obrigatória nas escolas. A coisa vai além, muito além, disso.
O ensino público, mormente nos níveis fundamental e intermediário, é vítima de uma descrença absoluta. Os motivos vão desde a falta de instalações físicas adequadas até à ridícula remuneração dos professores. Enquanto isso, as redes de ensino particular proliferam com a capacidade de um preá e estão aptas a fazer e a aumentar fortunas nababescas. É imperioso anotar, presidente, que a derrocada do ensino público iniciou e foi acelerada precisamente durante os vinte e um anos em que sua falecida genitora governou o Brasil. Assim, o senhor lhe prestaria homenagem muito mais relevante se se dispusesse a resgatar tão violento equívoco.
Se lhe sobrar tempo, presidente, entre um 1° de abril e outro, dê também uma olhadela no Sistema Único de Saúde. Há brasileiras parindo nos corredores das maternidades. Conseguir internação em um hospital público é tarefa que não caberia nem no gênio inventivo e aterrorizante de Kafka. Realizar um exame laboratorial, então, nem se fala. Depois de meses para obter a requisição, outros tantos são necessários para que o exame se efetive. Enquanto isso, parece haver um convênio entre o SUS e as patologias, no sentido de que estas interrompam o seu curso durante o período em que a lerdeza e a burocracia oficiais desempenham seus papéis.
Bom, tenho que reconhecer que o senhor, presidente, está vendo se resolve a questão da previdência. De maneira atabalhoada, é certo, pois ninguém se entende quanto a essa tal de “articulação parlamentar”. Não tenho capacidade técnica para opinar se sua proposta está no rumo certo. É tudo tão confuso que nem mesmo a equipe oficial sabe explicar os detalhes que permeiam o projeto. Mas, com certeza, em fazendo isso, está Vossa Excelência gastando seu tempo em coisa mais útil do que relembrando pesadelos que, só por o serem, devem permanecer esquecidos.
Da minha parte, tenho uma confissão a fazer: estou torcendo para que o barulho a ser feito nos quartéis com a tal comemoração não seja muito grande. Moderem-se os decibéis. Não podemos correr o risco de que, sendo tonitruante o som dos tambores e muito agudo o toque dos clarins, vá o festejo incomodar o sono da falecida e enterrada senhora ditadura, despertando-lhe laivos de ressurreição. Nem pensar. Antes uma boa morte.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])