
Chico Buarque diz que foi visitar a Lapa, na esperança de rever a folclórica e velha malandragem daquele lugar carioca. Voltou decepcionado. Já nada havia dos modelos que inspiraram, por exemplo, Bezerra da Silva. No samba, então, o poeta revela que encontrou até “malandro candidato a malandro federal”. Muitos se elegeram e a prova inconteste disso é a esmagadora maioria com que foi aprovada, na Câmara Federal, a proposta de emenda apelidada de PEC da blindagem. É uma deslavada tentativa de criar uma couraça protetora para os parlamentares, de tal forma que, na prática, ficariam eles inalcançáveis pela justiça na hipótese de praticarem atos ilícitos, tangenciando a lei penal.
Devemos aqui fazer um apontamento significativo, com vistas a sermos justos com os malandros da Lapa. O tipo por eles encarnado está longe de encontrar representatividade nos “malandros federais” de que fala o compositor. Não eram eles dados a atos de violência e, ao que consta dos relatos, não passavam a vida correndo às delegacias de polícia para responder a um eventual BO. Já os outros, os “federais eleitos”, estes se notabilizam pela incursão habitualíssima nos meandros do Código Penal, praticando com desenvoltura as mais variadas espécies de crimes, entre tantos que compõem a nossa legislação.
Chega, portanto, a parecer natural que essa gente, num comportamento até intuitivo, busque se precaver dos efeitos estabelecidos e previstos no ordenamento punitivo brasileiro. Afinal de contas, tem-se presente a sabedoria popular, segundo a qual, “Mateus, primeiro os meus, depois os teus”.
Mas eles não se dão conta de algo de extrema relevância: esse é o tipo de corporativismo nocivo, antipático e intolerável. De pronto, ele atenta contra o princípio da igualdade, inserto em todos os normativos civilizados, proclamando que “todos são iguais perante a lei”. Não me alimenta qualquer ilusão burguesa de que a afirmativa, numa sociedade de classes, funcione como princípio e/ou dogma. Em tais condições, tem ela efeito meramente retórico, traduzindo mais uma ilusão supostamente filosófica do que uma efetiva conquista social. Nem por isso pode deixar de servir de balizamento, de maneira a deixar perceber que o estabelecimento de privilégios não se pode erigir em regra.
Ademais disso, a blindagem, como pretendida, faz nascer ou vicejar nas pessoas comuns a ideia de que a “política” é um ambiente propício para criação e convivência de bandidos engravatados, dispostos a tudo para a obtenção de vantagens pessoais, sem nenhuma possibilidade de freio. A consequência imediata é o descrédito que se abate sobre a instituição que abriga esses infelizes, o que, como não poderia deixar
de ser, põe em xeque a validade de toda a base em que assenta o estado democrático de direito.
Está-se a ver que, em termos civilizatórios, isso é um retrocesso da maior gravidade. Diz-se que “elogio em boca própria é vitupério”. Se transportarmos o pensamento para o caso em exame, não fica difícil estabelecer que vitupério também há de ser o legislar em causa própria. A tal proposta nada mais é do isso. Uma vergonhosa busca de autodefesa preventiva, forjada por homens e mulheres que, por definição, deveriam ser exemplos de civismo e austeridade. Muito ao contrário, conscientes de que suas atividades muitas vezes tangenciam o mínimo jurídico, cuidam de pretender uma impunidade que seria ridícula se não fosse trágica.
Vi que um senador afirmou, com muita convicção, que a PEC será sepultada na Câmara Alta. É bom, muito bom, que o seja mesmo. Já não estamos em tempo de tolerar sandices dessa ordem. Otimista, ainda quero acreditar que encontraremos o “bom malandro” no Senado. Se ele existir e for majoritário, é possível mandar um recado para os “malandros federais”: nem no mais modesto ambiente municipal, os senhores teriam condições de exercer mandatos. Porque, tirada a prova dos nove, nem malandros sabem ser.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor, Jornalista, Poeta – [email protected]) – 20.09.25