Manaus 350, proposta de resgate à nossa memória histórica – Por Osíris M. Araújo da Silva(1)

Economista Osíris M Araújo da Silva(AM)

Lastimável constatar: aos 350 anos, acredite ou não, Manaus mantém-se desconectada e distanciada de seu passado, negando reconhecimento e homenagens aos vultos históricos, aos pioneiros e desbravadores que fincaram os marcos civilizatórios na Amazônia. Particularmente, a história de Manaus tem início com a fundação do Forte de São José da Barra, em 1669.

De acordo com historiadores, a fortaleza foi construída para assegurar o domínio da coroa de Portugal na região, área da confluência do rio Negro com o Amazonas e o Solimões, e controlar o portão de entrada dos confins ocidentais da Amazônia, reservados à Espanha (1494), pelo Tratado de Tordesilhas.

O povoado recebeu o nome de São José da Barra do Rio Negro (Lugar da Barra) e em 1832, sob a denominação de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, o vilarejo foi elevado à categoria de vila. Em 1848, a Vila da Barra foi elevada à categoria de cidade, com o nome de Cidade da Barra do Rio Negro, para receber em 1856 o nome de Manáos, em homenagem à nação indígena dos Manaós (Mãe dos Deuses), considerada o mais importante grupo étnico habitante da região, reconhecido historicamente pela sua coragem e valentia.

Cidades, ao redor do mundo, prestam prodigamente tributos aos antecessores, aos desbravadores que vencendo toda sorte de intempéries, deram a vida pela construção do ideal de fundar e desenvolver sua comunidade, concelho (com “c” mesmo), a freguesia. Exceto Manaus.

Constrangedor verificar a não existência na cidade de um monumento dedicada às três principais figuras que construíram nossa història: o madeireiro, o pescador e o seringueiro. Ou aos povos indígenas, nossos ancestrais, os que nos antecederam na Terra de Santa Cruz.

Embaraçoso, por outro lado, constatar o “esquecimento” do amazonense de perpetuar a memória em logradouros públicos do grande governador Eduardo Ribeiro, de Álvaro Maia, Cosme Ferreira Filho, Plínio Coelho, Gilberto Mestrinho, Moyses Israel. Não há ao menos um busto em homenagem a Pereira da Silva, a Arthur Amorim, a Roberto Campos e a Castelo Branco, os que formularam as ideias estruturais e o desenho institucional tangentes à criação da Zona Franca de Manaus, o pulmão da economia moderna do Amazonas.

Da mesma forma passam ao largo, sem o devido reconhecimento público, empresários do porte de um Isaac Sabbá, Adalberto Valle, Djalma Batista, Mário Guerreiro, Isaac Benchimol, Isaac Benzecry, Rioto Oyama. Adicionalmente, convém observar: a não ser os “antigos”, os mais velhos, quem hoje lembra do regatão, a importante figura que ligava por meio dos rios da Amazônia, Manaus aos seringais dos altos rios, transportando gêneros e utensílios e trazendo a borracha, a sorva, a castanha, os couros e peles, as essências vegetais, produtos extrativos da floresta sobre os quais sustentava-se nossa economia.

Nenhum deles foi homenageado com uma estátua ou ao menos um busto na cidade.

Dever de cidadão

Sou, por formação, sensível ao enaltecimento da história memorialística de um povo como meio de potencializar o presente e o futuro. Entendo a necessidade não de “reviver” o passado, mas de resgatá-lo para melhor compreender o presente e, por extensão adquirir meios catalisadores de um futuro livre dos erros e amarras pregressas.

Max Weber (1864-1920), ao publicar em 1904 “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, considerado, na lista das obras de não-ficção como o livro do século XX, tornou-se conhecido do mundo científico por buscar comprovar perante a história a eficácia da interpretação da sociedade partindo “não dos fatos sociais já consolidados e suas características externas (leis, instituições, normas, regras, etc.), mas centrando-se no indivíduo que nela vive, ou melhor, pela verificação das ‘intenções’, ‘motivações’, ‘valores’ e ‘expectativas’ que orientam as ações do indivíduo na sociedade”.

Com efeito, entendo ser do dever dos que integram academias, entidades científicas, históricas e literárias ter como missão basilar, dentre outras funções específicas, retratar, cultuar e homenagear a presença e o papel dos pioneiros, homens e mulheres que doaram suas vidas para a construção de nossa terra nos seus mais diversificados setores de atividades.

Nesse contexto, sinto muita falta, incomoda-me sobremaneira, a ausência de um efetivo reconhecimento do poder público e da sociedade amazonense aos desbravadores da Amazônia, dos que, embrenhados nos altos rios, ali estabeleceram raízes, criaram famílias, descendências e fincaram os marcos civilizatórios que permitiram a construção do hoje estado do Amazonas e de sua capital, Manaus, a Manaós de nossos ancestrais, ora completando três séculos e meio.

Curiosamente, salvo na Praça da Saudade, onde se ergue estátua em tributo a Tenreiro Aranha (1798-1861), primeiro presidente da Província do Amazonas, nossos ancestrais, os pioneiros que construíram nossa economia, nossa cultura e nossa história são solenemente ignorados.

Urge promover o imediato resgate desse passivo oneroso.

Ouço, amiúde, de pessoas de alta representatividade social e econômica absurda sequência de desculpas esfarrapadas na tentativa de justificar o descaso de autoridades e representações políticas para com nossa história. Dentre as mais comuns, a estapafúrdia afirmação de que “o amazonense odeia sua terra”.

Algumas dessas pessoas, embora se auto inclua no grupo, e, com efeito, assuma culpa por imperdoável erro, mantêm apartamentos em Fortaleza, no Rio ou em São Paulo, adquirido com recursos amealhados aqui, na terra cujos fundamentos históricos despreza, acomodadas, individualística e egoisticamente em sua zona de conforto.

A Assembleia Legislativa e a Câmara Municipal de Manaus, casas do povo, são pródigas em conceder homenagens diversas, títulos de cidadania, medalhas disso e daquilo a personagens, na maioria dos casos sem vinculação de expressão ou sem que hajam prestado serviços relevantes ao nosso Estado. Deploravelmente, todavia, omitem-se no resgate e valorização dos personagens que construíram nossa história.

Memorial aos Desbravadores

Assim entendido submeti à Prefeitura de Manaus, com apoio do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas ( IGHA), do qual sou membro, e na qualidade de cidadão comprometido com a história e o futuro de minha terra, proposta relativa a envio de Projeto de Lei à Câmara de Vereadores de Manaus de criação e construção do Memorial aos Desbravadores a ser instalado em lugar de destaque da cidade homenageando, conjuntamente, e num primeiro momento, o seringueiro, o madeireiro e o pescador.

A proposição foi aprovada por aclamação pelo Conselho de Gestão Estratégica da PMM, do qual sou membro, em sua reunião do dia 28 de setembro passado.

Cabe a cada cidadão lutar pelo saneamento da dívida e o resgate de nosso passado que, a cada dia se esvai, perdendo-se nas brumas do tempo. Não podemos apenas e comodamente esperar pelo poder público. Precisamos agir com determinação e consciência do nosso papel perante a sociedade. Afinal, todos somos responsáveis. Somos nós que construímos a história.

Além do mais, não podemos esquecer: povo sem memória é povo sem história, sem presente, sem futuro.

Parabéns Manaus por seus 350 anos!

Manaus, 20 de outubro de 2019.

(1) O economista e escritor Osíris Messias Araújo da Silva é membro do IGHA, da ALCEAR (Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas) e do GEEA (Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos) do INPA.