
Que eu me lembre, dona Neném era a mais eficaz e a mais afamada rezadeira da rua Leonardo Malcher e adjacências. Velhinha e encarquilhada, dava gosto ver o fervor que ela punha na invocação das estrelas, quando se tratava de curar uma íngua. Ninguém melhor do que ela sabia costurar carne trilhada e a perícia com que a agulha ia e vinha pelo pano haveria de fazer inveja a muitos dos modernos métodos de fisioterapia. Menino com quebranto era talvez sua especialidade, tantas eram as visitas de mães aflitas ao seu modesto casebre de madeira tosca. O curumim derreado, com febre de trinta e nove graus, era entregue aos cuidados da nossa boa anciã, que sobre ele balançava o galhinho de arruda, pronunciando ditos esotéricos, frutos de um conhecimento que se perdia na noite dos tempos. E exibia, ao fim do ritual, a planta completamente murcha, sendo impensável insinuar que o fenômeno se deu pela seguida e constante agitação do galho. Seria ofensivo, e a um imprudente gaiato que, de certa feita, ousou a insinuação, dona Neném esconjurou, ao mesmo tempo em que demonstrava por a mais b que as folhas tinham esmaecido por força da absorção dos fluidos do mau olhado, fonte primeira e única do quebranto e das suas consequências. Não recebia um tostão pelo benefício prestado. Bastava-lhe poder abençoar a mãe agradecida. Belo exemplo de modelo para o SUS.
Mas não nos desviemos da rota. Mau olhado sempre foi uma patologia preocupante nos arraiais dos simplórios e singelamente crentes. Era (acredito que para muitos ainda seja) a causa de males que se manifestavam pelas mais diversas formas, todas elas com a característica comum de deixar o infectado num estado de profundo desânimo e abatimento. Na literatura sobre o assunto, um caso específico me chamou a atenção por sua singularidade. Conto-o tal como me foi passado.
Ocorreu com um senhor, operário de profissão, que se chamava Tarquínio. Era um sujeito correto, cumpridor de seus deveres, verdadeira encarnação daquilo que o nosso professor Carlos Gomes chama de “pobre, com a graça de Deus, mas honrado”. Um dia, o homem acordou alvoroçado. Estava num pé e noutro e, antes mesmo da xícara de café preto ao pão com margarina, confessou à companheira: “Mulher, acordei com uma vontade danada de votar no Bolsonaro”. A boa senhora levou um susto, ainda não refeita da noite mal dormida, com a filhinha de um ano a bom chorar com dor de barriga. “Cruz, credo, homem. T’arrenego. Só pode ser mau olhado”, foi a reação, seguida do conselho: “Vê se cuida de curar isso que de problemas já me bastam os que tenho. Era só o que me faltava. Antes uma boa morte”.
Nesse tempo dona Neném já não estava na terra, mas Tarquínio ouvira falar de um velho, morador lá para as bandas da Nova Floresta, que, dizia-se, vinha fazendo prodígios de cura no setor específico de que se cuida. Segundo o anúncio dos classificados, tinha ele até completado um curso de exorcismo por correspondência. Depois de três ônibus, algumas ladeiras e matagais esparsos, chegou nosso herói ao destino. Desembolsou logo cinco reais que, em tempos bicudos, não dá para fazer graça com a barriga vazia. Exposto o problema, o consultor espiritual, chamemo-lo assim, já que seu nome me escapa, jogou as cartas de tarô, fumou uns três charutos e foi ao ponto: “Seu Tarquínio, seu caso é muito grave. É certo que não vi ainda nenhum sinal de possessão demoníaca, mas tudo vai depender da intensidade da sua fé”.
E prosseguiu em termos mais ou menos assim: sendo o senhor católico, confesse seus pecados e passe a pronunciar, três vezes ao dia, a jaculatória milagrosa que diz: “com Deus me deito, com Deus me levanto; com a graça de Deus e do divino Espírito Santo”. Além disso, vá imediatamente à igreja onde se cultua o santo de sua predileção, assista à missa e, na hora do ofertório, entregue boa parte do seu décimo terceiro, que o santo pode ser bondoso, mas não é besta. Dando-se o caso de que o senhor seja muçulmano, vire-se para Meca, ponha-se de joelhos e, com a bunda tão empinada quanto lhe permita a musculatura, estique os braços para frente e invoque o próprio Alá. Caso ele não esteja disponível, ocupado com os assuntos do Estado Islâmico, contente-se com as barbas do Profeta, que lhe hão de ser de alguma serventia. Finalmente, se o senhor for protestante (denominação antiga e genérica dos que hoje são chamados de evangélicos), cuide de atualizar o dízimo, vá a uma sessão de descarrego e saia à rua repetindo em alto e bom tom: “aleluia, glória a Deus”.
Não me é dado informar se Tarquínio se curou da sua leseira. Sei apenas que, em matéria de urucubaca, o meu time, o Fast Clube, foi vítima de uma que durou nada menos que quarenta e cinco anos. Mas aqui eu sei bem a origem: o Robertinho Caminha e o Eurivan Reis de Paula, o Baixinho, que são nacionalinos fanáticos, lançaram um terrível mau olhado no Rolo Compressor. Mas os efeitos já se dissiparam.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])