O rio Solimões é exatamente o mesmo. Majestoso, intrépido, arrojado. Navegá-lo é penetrar um pouco na intimidade amazônica, no fulgor daquelas águas barrentas; viver parte de seus mistérios, enigmas e segredos confidenciais. É buscar no mais recôndito escaninho de suas memórias a vida que ali transcorre plena de regionalidade e cumplicidade para com suas verdades próprias, inalcançáveis à maioria dos seres estranhos à Amazônia.
Como no texto-poema de Thiago de Mello, desce “da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende, e traça trêmula um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Descende devagar, para crescer no chão. Varando verdes, faz o seu caminho e se acrescenta. Águas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes. De mais alto ainda, desce a água celeste. Reunidas elas avançam, multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície cortada pela linha do Equador”.
Pois bem. Singrando o rei dos rios, numa lancha rápida conduzida pelo experiente e educado piloto Irailton, minha comitiva chegou, numa viagem de uma hora em lancha rápida, partindo do porto do Iranduba, ao município de Manaquiri onde se realizaria uma apresentação à comunidade local de meu livro “Meninos do Manaquiri”. Evento programado especialmente como parte da Agroshow – Luzes Empreendedoras, organizado pela Prefeitura em parceria com o Sebrae Amazonas, ao qual compareci à convite do prefeito Jair Souto.
Tomei um susto ao chegar à cidade e, posteriormente, quando me vi diante da multidão comprimida no auditório da sede da administração municipal. Estudantes, gestores de escolas, técnicos administrativos e secretários, representações comunitárias e crianças, muitas crianças. Emocionado, senti orgulho daquele exato momento, do privilégio de poder compartir com os manaquirienses os relatos memoriais do livro, uma evocação de meus tempos de pré-adolescência lá vividos com um grupo de irmãos, primos e amigos durantes as férias escolares.
Os instantes vividos nesta ocasião ultra especial, revelaram, em todas as dimensões, o poder de um livro. Na verdade, o “Meninos do Manaquiri” é mais do que um simples livro. É na verdade uma obra literária que retrata as origens de um povo, a simplicidade de uma comunidade de lavradores, pescadores e produtores agrícolas e pecuários, que exerciam a vida livremente, longe de valores monetários, e que, talvez até inconscientemente participavam da construção de de uma municipalidade próspera, ordeira e consciente do seu papel na conjuntura econômica do Amazonas.
O Manaquiri, com efeito, evoluiu daqueles povoados singelos, espalhados ao longo do paraná e lagos, cujos negócios baseavam-se no escambo garantido a fio de bigode. Transformado no maior produtor de batata doce do Estado, vem investindo forte no setor primário (na produção de melancia, milho, jerimum, farinha e derivados; na pecuária bovina, ovina e avícola), graças a planos e projetos da administração municipal comandada com eficiência e responsabilidade pelo prefeito Jair Souto. Um gestor moderno que trabalha, diferentemente da maioria dos prefeitos brasileiros, sobre propostas concretas de ações diretamente exercidas junto às comunidades de produtores.
A gestão municipal tem um objetivo inarredável: tornar realidade o preceito de não dar o peixe, mas fornecer a vara e ensinar a pescar. Única forma de livrar amarras que aprisionam o cidadão a verbas assistenciais improdutivas que, mesmo garantindo, embora precariamente o sustento de sua família, fere, porém, sua dignidade.
Viajando pelo interior do município revi a placidez das águas do paraná e dos furos, onde se encontram instaladas as tradicionais comunidades banhadas pelos lagos do Jaraqui, do Cai N’água, S. Francisco, Fuxico, Miraaua, Limão, Meru, Meruzinho, Araçatuba, Ubim, Andiroba, Salsa e Sumaúma. Tive o privilégio de presenciar, extasiado, como nos tempos de garoto, a mesma elegância dos voos de garças e maguaris, dos irrequietos mergulhões e patos do mato, da vivacidade de socós, jaçanãs, saracuras, papagaios e curicas, como também a timidez das desconfiadas ciganas.
Admirei a mesma serenidade dos pescadores que, desde que nascem, descem suas redes, tarrafas e espinhéis em busca dos preciosos pescados armazenados vivos em despensas naturais – rios e lagos -, permanentemente abastecidas pela mãe natureza que ali se mantém intocada, íntegra, dadivosa, generosa, harmoniosa e bela. Com uma diferença, o meio de transporte hoje é motorizado. O caboclo aposentou em definitivo o remo. Suas canoas e pequenos barcos são movidas a motores de popa, rabetas ou de centro. Alguns deles guiados sem rodas de leme. Acredite-se, por remos manipulados à mão.
As terras ali são boas, podendo-se desenvolver, de maneira sustentável, a agricultura, pecuária, piscicultura, produção de mel e óleos essenciais. O município, que tem experiência acumulada no setor, em breve se tornará o maior produtor de farinha do Amazonas. A Prefeitura, por meio de sua secretaria de Agricultura, está investindo forte na assistência técnica aos produtores, transmitindo-lhes noções básicas de gestão por resultado. E, com efeito, alcançar nível de excelência na qualidade do produto, lastreada nos fundamentais cuidados sanitários e de higiene.
Outra vocação inata do Manaquiri: turismo e artesanato. Há enorme potencial do setor, particularmente no tocante ao turismo esportivo e de aventura, pesca e observação de pássaros. Artesãos locais são muito criativos, podendo, com treinamento adequado em sistemas de produção e sobre noções mercadológicas, alavancar economicamente o setor.
O Manaquiri, hoje dotado de luz elétrica, telefone e internet está conectado com o Brasil e mundo. Do meio do rio Solimões – quem diria – pode-se participar de reuniões on-line, fechar negócios em qualquer lugar do mundo ou simplesmente se comunicar com sua comunidade por meio das redes sociais.
Os tempos, definitivamente, são outros. Ainda bem.(Osíris M. Araújo da Silva é Economista, Consultor de Empresas, Escritor e Poeta – [email protected])