Vez por outra a imprensa local nos dá conta de que o “setor de duas rodas” do Polo Industrial de Manaus teve um crescimento significativo, elevando a produção de motocicletas num percentual gratificante. Acredito que governantes e economistas (e os ortopedistas também) devem saborear a notícia. Nos intrincados meandros em que navegam, isso deve significar aumento na arrecadação de impostos e contribuição para a elevação do PIB (e mais ossos quebrados), o que já é suficiente para que gráficos e estatísticas sejam alimentados e exibidos, como prova de fortalecimento irreversível das nossas bases industriais. E eu, na minha oceânica ignorância quanto à matéria, não tenho nenhum motivo para duvidar do acerto e correção de suas posturas. Hão de saber o que fazem e o que dizem. O que não me impede de, bem no íntimo, exclamar algo que soa mais ou menos como “essa não”.
Quando eu era jovem até pensei, num determinado momento, em comprar uma lambreta. Não deu certo. Acho que faltou dinheiro ou eu não consegui mesmo aprender como me equilibrar na geringonça. Continuei andando a pé ou encarando os ônibus de madeira que circulavam aqui pela província. Ainda bem, porque até hoje, quando os meus cabelos, se existissem, já seriam brancos, não consigo estabelecer se andar de moto é um ato de coragem, de pura temeridade ou de absoluta necessidade. Já vislumbro a risada dos jovens: “esse velho não sabe o que é desfrutar da sensação de liberdade que só o deslocamento veloz daquele veículo consegue proporcionar”. Só posso replicar com um singelo “eu, hein, Rosa!”
Machado de Assis, nas “Memórias Póstumas”, recomenda aos seus leitores que busquem se livrar, por todos os meios, de uma ideia fixa. Foi uma desse tipo que levou Brás Cubas à morte. Implantou-se-lhe no trapézio do cérebro e ali ficou balançando até que, obcecado pelo desejo de criar um emplasto, fez com que o herói se descuidasse da saúde. Consequências: pneumonia e óbito. Já aqui o modesto escriba, que nem em sonho pode ter tantos leitores quanto o Bruxo, adaptaria a recomendação no sentido de que é conveniente, sob todos os aspectos, livrar-se de uma moto no trânsito. Ela vem sorrateira, rápida, implacável e lhe corta a frente sem nenhum aviso ou consideração. Isso, esteja você de automóvel ou a pé. O fenômeno é inevitável e já faz parte das agruras cotidianas do trânsito da Cidade Sorriso. E pode ter o mesmo efeito da ideia do emplasto.
E por que o digo? Acabo de ler na internet a notícia de que o “número de motociclistas mortos no trânsito de São Paulo supera óbitos de pedestres pela primeira vez desde 1979”. Segue assim: “Foram trezentas e sessenta e seis vítimas fatais que
estavam em motos, ante trezentas e quarenta e nove pessoas a pé”. Os números se referem ao ano de 1918 e constam do relatório anual de acidentes de trânsito, divulgado pela Companhia de Engenharia de Tráfego daquele Estado. São impactantes como é impossível deixar de reconhecer.
Deve ter sido um esforço concentrado dos motoqueiros para conseguirem obter essa vitória macabra sobre os pedestres. Estes aqui, mesmo solidamente fincados sobre seus membros inferiores, representam perigo de outro tipo. Quem ainda não viu um abestado, com fones nos dois ouvidos, andando pelas ruas como se estivesse flanando numa praia? Existe também aqueloutro que, definitivamente amasiado com o celular, vai usando o aparelho, enquanto, numa leseira monumental, empreende a travessia de uma via de trânsito intenso.
Mas vamos ser justos. Os motoristas de carros também não estão em odor de santidade. É suficiente constatar a existência daqueles que não conseguem entender a desnecessidade de uma lei para estabelecer a insofismável de verdade de que dirigir depois de ingerir bebida alcoólica é de uma burrice espetacular. Cachaça e direção são tão incompatíveis quanto Bolsonaro e Filosofia. Além do que a nobre degustação de um Johnnie Walker “red label” não pode e não dever ser perturbada pela plebeia ocupação de sentar atrás de um volante.
“São coisas da modernidade”, dir-me-á o observador mais ou menos despreocupado e exibindo uma filosofia de contemporização. Pode até ser, concedo. O que, todavia, não muda as sinistras características do cenário.
Mas não posso terminar sem lembrar que, por uma coincidência, “dessas que descem d’além”, meu filho Luís Carlos adquiriu uma Halley Davidson, considerada a rainha das motos, e nela vez por outra anda montado pelas tranquilas ruas e avenidas do Rio de Janeiro. Diante da inevitável preocupação paterna (pai não perde o vício), deu uma explicação teórica, por certo embasada nos seus conhecimentos de mais que doutor: “Pai, eu não sou motoqueiro. Sou condutor de um veículo de duas rodas”. Ah, sim! Ainda bem.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmailcom)