No meu tempo, o estudante tinha contato com o direito civil no segundo ano da faculdade, estudo que se prolongava até à quinta série. Lembro-me do professor João Ricardo de Araújo Lima tentando nos colocar na cabeça as noções primárias daquele ramo da ciência jurídica, que, na verdade, é fundamental para o aprendizado. Para mim, isso foi no longínquo ano de 1962 e recordo do mestre explicando o que estava num dos artigos iniciais do código respectivo (o quarto, se a memória não me trai), nestes termos: “a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.
Confesso que jamais conseguir compreender a norma na sua plenitude, muito menos no que diz respeito ao seu alcance prático. Nenhuma responsabilidade do professor por esta minha confessada ineficiência. É que, na vida profissional, deixei de lado o direito civil, preferindo enveredar pelos caminhos, igualmente ásperos, do direito penal, a cujo estudo me dediquei com mais intensidade, virando frequentador assíduo da tribuna do júri. Por quê, então, essa reminiscência agora manifestada? Vou tentar explicar.
Li aqui no Diário que foi apresentado ao legislativo um projeto visando a instituir, como data comemorativa, o “Dia do Nascituro”. A carruagem do tempo voltou e eu acabei recordando aqueles dias de frequência à velha Jaqueira da Praça dos Remédios. E pus-me a matutar: com que, então, vamos ter um dia inteirinho dedicado aos nascituros! Acho que, com isso, será dado o ponta pé inicial para a solução de todos os problemas que afligem a Pátria. Já pensou? Os nascituros todos em festa, esbanjando alegria porque seu dia chegou? Não pode haver nada mais edificante.
Concedo-me o direito de imaginar como se desenvolverão as festividades no alvissareiro dia. A Arena da Amazônia haverá de estar engalanada com ornamentos e galhardetes coloridos e chamativos, como é justo para a grandiosidade do espetáculo. Clarins estarão tocando, entre uma apresentação e outra de uma banda adepta do ritmo da moda. O Comitê Organizador não poupou trabalho para bem estruturar o ambiente. Assim é que o acesso foi disciplinado, criando-se três fileiras bem distintas, assim distribuídas: nascituros do sexo feminino, fileira um; nascituros do sexo masculino, fileira dois; nascituros ainda sem sexo definido, fileira três. Tudo muito racional e estudado.
As prenhes da cidade acorrem aos borbotões, até porque o transporte público foi liberado, como forma de buscar a maior igualdade possível entre nascituros de todas as classes sociais. Maternidade nenhuma do mundo há de ter conseguido ver
tantas grávidas reunidas em um só lugar e ainda longe da hora de parir. Chegam gordas e magras, jovens e outras nem tanto, mas todas carregando com muito orgulho o produto de seus amores, ao qual fazem questão de demonstrar o maior carinho e imenso afeto. E, para isso, nada melhor que aproveitar a perspicácia do legislador que, em boa hora, se lembrou de que existem nascituros.
O melhor planejamento, contudo, não pode atingir a perfeição. É da essência dos atos humanos, se permitem a acaciana ponderação. Assim é que, dona Maria, ostentando seus sete meses de gravidez, está se dirigindo indignada a um dos responsáveis pela área de entrada da Arena. Balançando a bolsa e enxugando o suor do rosto, vocifera ela por este modo: “Isto é uma desconsideração; uma falta de respeito”. Pergunta paciente do jovem que a atende: “O que aconteceu de tão grave, minha boa senhora?” E ela, cada vez mais afogueada: “Não vi nenhum lugar por onde eu possa entrar”. – “Mas, como minha senhora, se aquelas placas estão bem ali explicando claramente qual a fileira que a senhora deve tomar?” Foi como jogar azeite na fervura. A boa mulher quase tem um desmaio, antes de explodir apoplética e com o dedo em riste: “O senhor é um incompetente. Ali diz por onde entram os nascituros masculinos e os femininos. Acontece que eu não me enquadro em nenhum dos casos”. Foi a vez do atendente não entender mais nada e ficou ali, boquiaberto sem saber o que dizer. Veio, então, a explicação do que motivou a reclamação tão enfática: “Seu idiota, nesta barrigona que o senhor está vendo bem aqui na sua frente eu estou transportando um nascituro e uma nascitura. Agora me diga se existe ali uma placa dizendo por onde eu posso entrar?”
A interferência do Comitê conseguiu botar ordem na casa e tudo voltou ao normal. Na edição subsequente da festividade, optou-se por manter as três fileiras, mas sem nenhuma indicação específica. Bastava a barriga para justificar o ingresso. E foi assim que a civilização deu um passo gigantesco, alavancada pela criação do “Dia do Nascituro”. E eu ainda me dou ao trabalho de estudar.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])