Pianista fará expedição no Amazonas trazendo pianos para doar às comunidades

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Em 2017, a pianista Carla Ruaro pôs um piano em um barco e percorreu ao longo de 40 dias comunidades ribeirinhas e indígenas do Brasil levando o instrumento que muitos deles nunca haviam visto antes.

E dentro do piano, “colocou a Amazônia, como gosta de dizer, em alusão ao mix envolvente de sonoridades da floresta – desde cânticos dos pássaros ao som das águas e de instrumentos indígenas – com releituras de obras de compositores amazônidas que apresentou nas regiões remotas visitadas.

Registrada no documentário “Raízes – Um Piano na Amazônia”, lançado em 2018 e premiado em festivais de cinema no Brasil, na Finlândia e nos Estados Unidos, a expedição vai ser refeita, agora em um percurso expandido, de Belém a Manaus, para ser contada em um longa-metragem. E a expedição, que deverá acontecer entre o final de 2022 e início de 2023, terá um elemento a mais.

Na verdade, 20 elementos, ou melhor, 20 pianos que a artista conseguiu de doações em Londres e que virão para o Amazonas. Na primeira expedição, na travessia pelo rio Arapiuns, no Estado do Pará, centenas de adultos e crianças assistiam a apresentação, sempre precedida de uma introdução conceitual sobre o instrumento, no espaço improvisado no barco.

Diferentemente da experiência de 2017, a próxima viagem vai levantar patrocínio e apoio por meio do programa paraense de incentivo à cultura Semear. Terá uma produtora de cinema de Los Angeles e já começou a ser estudada pelo roteirista Mitchell Kriegman, segundo a artista.

“O primeiro filme foi independente. O cinegrafista foi com a intenção de fazer um registro amador, mas vimos que o material tinha qualidade, e fui editar com o meu marido. Tivemos ajuda de voluntários. O jornalista Paulo Markun fez o roteiro”, diz.

Concertos Para o novo projeto, o plano é abrir com um concerto em Belém e encerrar com outro em Manaus. Segundo Ruaro, será comprado mais um piano, porque o anterior foi doado para a escola filarmônica de Santarém no fim do percurso. ​Desta vez, a pianista também fincou as próprias raízes. Vai deixar sua residência em Londres para morar durante uma parte do ano no distrito de Alter do Chão, em Santarém, onde planeja construir um espaço de cultura fixo para atrair jovens estudantes e artistas estrangeiros em projetos de conexão com a natureza.

Viagens

A pianista interrompeu o doutorado no Reino Unido, onde mora há quase 20 anos entre idas e vindas ao Brasil, e desembolsou recursos próprios para viabilizar a ideia na primeira expedição.

O trampolim para mergulhar no projeto ocorreu em 2012, quando Carla recebeu o Prêmio Funarte, reconhecido concurso nacional pelo projeto “Multiplicando a Música Brasileira na Amazônia”. Por meio do projeto, ela ministrava oficinas e concertos de música brasileira pela Inglaterra, Irlanda e Emirados Árabes Unidos junto com o trio Brazilian Ensemble.

A motivação por trás da investida da porto-alegrense era potente: converter o instrumento musical num meio de transformação social, algo que a artista já buscava concretizar levando a música para hospitais, presídios e outras plateias comumente marginalizadas no acesso à arte em sua atuação na Europa. O ímpeto de “conectar o piano à natureza e às suas gentes” e levar ao palco a “riqueza da sua música e cultura” ajudou Carla e sua equipe a superar os desafios inicias.

O piano que acompanhou Carla na expedição foi comprado em Belém e iniciou sua primeira travessia até o porto de Santarém em um barco de cargas entre sacas de batatas, frutas e legumes, por três dias pelo rio Amazonas. Depois, o instrumento precisou ser revirado de cabeça para baixo ao ser içado para outro barco menor antes de finalmente chegar ao destino final, ou melhor, ao ponto de partida da jornada lírica no qual seria tocado pela pianista em concertos e oficinas na embarcação definitiva.

Oficinas No interior do barco Jorge Olinto foram realizadas entre 2 e 4 oficinas de piano por dia. E quando a floresta se preparava para dormir, concertos eram realizados à noite à beira do rio em comunidades como Vila Franca, Tucumã, São Pedro, Mentai, Curi, Bom Futuro, São Francisco, Atodi, Vila Gorete, Vila Brasil, Lago da Praia, Urucureá e Alter do Chão.

A experiência inspiradora foi filmada e transformada no documentário “Raízes – Um Piano na Amazônia” em 2018, que contou com direção artística de Tatiana Cobbett e direção musical de Gustavo Roriz. O filme de 30 minutos de duração foi exibido em festivais internacionais e premiado no Festival de Cinema de Alter do Chão e no Kalajoki Festival, na Finlândia.

“Uma das coisas que mais defendo é o conhecimento da cultura da Amazônia. Aqui fora, as pessoas pensam na floresta apenas como uma ‘tapete verde’ que precisa ser preservado, mas não sabem quem são as pessoas aptas a manter as árvores de pé”, disse em entrevista de Londres ao Um Só Planeta. Carla enxerga a música e a cultura como meios de manter os povos unidos e busca transmitir esse olhar nas apresentações, que surpreendem os públicos mais diversos.

O primeiro documentário mostra como a visita do piano fez sucesso nas oficinas com as crianças ribeirinhas, que gargalharam ao aprender a diferença entre os sons graves e agudos e acompanharam as canções para falar de chuvas e árvores. “Eles não perguntavam de onde nós viemos, mas quando voltaríamos. Isso me emocionou, porque eles não querem sair dali. São felizes lá e querem que o piano volte”, diz Ruaro.

Carreira

O trabalho foi um divisor de águas na carreira da artista, que passou a mostrar o filme de 29 minutos em seus concertos no exterior, quando toca os compositores da Amazônia. Ela deixou de ser a pianista clássica do início da carreira e hoje se apresenta descalça acompanhada de instrumentos indígenas. “O mais impressionante é que o público, depois que ouve, vem me contar que não tinha ideia de que essa música existia.

Para o estrangeiro, a Amazônia é um tapete verde, uma floresta e nada mais. Eles não têm ideia de que tipo de arte é feita aqui e o quanto isso é importante para a preservação”, afirma Ruaro. Ela diz ter compreendido que o trabalho também produz efeitos na autoestima das comunidades. “Quando eu falei que as músicas que eu tocava foram inspiradas na cultura do povo daqui, uma menina me agradeceu. Isso mexe com a vontade deles de preservar a própria cultura”, afirma.(Portal Marcos Santos)