Os bolsonaristas têm todos os motivos do mundo para se mostrarem orgulhosos. O discurso na ONU demonstrou que seu ídolo mantém intocadas as qualidades que o fizeram endeusado e eleito. Permanece “opaco como pedra”, se me é permitido usar a expressão com que o Che traduziu a capacidade de compreensão política dos camponeses bolivianos.
Em termo de ideias, vivemos tempos difíceis. Claro que já vi inúmeros vídeos buscando provar que o país avançou em matéria econômica, que o desemprego diminuiu e que, agora, caminhamos céleres rumo ao verdadeiro capitalismo. Acontece, porém, que capitalismo não é (muito pelo contrário) sinônimo de burrice, nem se traduz necessariamente pela arrogância vazia e inconsequente. Quando agride outros países e menospreza líderes estrangeiros, o presidente revela apenas uma caturrice incompatível com as altas funções que lhe foram legitimamente cometidas.
Ente outros, chamou-me especial atenção um trecho da fala presidencial, quando ele afirmou perante o mundo que o Brasil se livrou do socialismo. Só pode ser uma espécie de monomania, que, segundo Houaiss, é a “forma de loucura em que um único pensamento ou ideia absorve a mente do indivíduo”. Alguém pode me dizer, por misericórdia, quando foi que este país experimentou qualquer coisa parecida com socialismo? Mas Sua Excelência, obcecado por um anticomunismo que nele se entranhou desde tenra idade, insiste em vislumbrar vermelhos soviéticos e cubanos até no simples degustar de um “bloody Mary”. Não foi latifundiário, é comunista. Pensou, é comunista. Não gosta do Trump, é comunistíssimo.
Se a memória não me prega peça, esse filme passou exatamente há cinquenta e cinco anos, quando o presidente João Goulart foi deposto, ao argumento de que favorecia a atuação de agentes financiados pelo “ouro de Moscou” para a implantação da ditadura do proletariado no Brasil. É algo velho, inteiramente superado pela história, mas Bolsonaro, saudosista do que há de pior na memória brasileira, insiste em reviver esse cadáver, insuflando-lhe vitalidade através de uma política de ódios e ressentimentos. Para ele, os vinte e um anos que se seguiram à deposição foram gloriosos e, por isso, não se cansa de render homenagens ao coronel Ulstra, cujo nome haveria de figurar no panteão dos heróis da pátria, talvez pela forma científica que logrou dar à tortura. Alguém se lembra de Torquemada? Acho que não, nem mesmo Bolsonaro, pois seus conhecimentos históricos parecem resumidos precisamente às duas décadas de ditadura militar, cujo fim ele continua a lamentar.
Fico imaginando como se sentiram os líderes das nações indígenas. O discurso deixou claro que os índios são considerados um entrave para o desenvolvimento nacional e que demarcação de territórios é coisa de que não se deve nem falar. Estava eu esperando que a televisão exibisse a chegada da cavalaria para dar apoio ao herói, com postura de John Wayne depois da virose. Ficou-me apenas a sensação do cultivo de um rancor infundado, do semear de um preconceito que, pelo visto e demonstrado, tem área de abrangência bem maior. Que o digam os homossexuais.
Enquanto isso, a autointitulada política anticrime do ministro Moro continua a fazer vítimas. Balas perdidas passeiam com a desenvoltura de pássaros e seu destino é tão aleatório quanto um resultado de loteria. Pode ser um bandido? Pode, é claro, mas pode ser também a costa de uma criança de oito anos que não podia entender absolutamente nada de exclusão de ilicitude. E, não esqueça, pode ser você também. Ou eu. Quem há de saber?
Temos, pelo menos, mais três anos e três meses pela frente. Vamos ter que aguentar porque, afinal de contas, assim determinam as regras do jogo. Mas eu devo confessar que sinto medo. Um medo indefinível porque fica apenas pairando no ar, da mesma forma como era o ambiente plúmbeo da ditadura. Não chega a ser nem um receio de algum tipo de restrição à liberdade individual. É algo mais diáfano, algo que nos envolve qual bruma e desnorteia quanto ao rumo que estamos tomando. É tão esquisito, tão estranho que eu me pego revelando uma coisa que até bem pouco atrás me parecia impossível: nunca imaginei que, depois da ditadura, eu iria torcer para ver um general na presidência da República. Pior do que o capitão não poderá ser. Que coisa!
Como dizia minha avó: calma e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Já estou enveredando pela meditação zen e conheço um dono de granja que me assegurou o fornecimento da matéria prima. Acho que dá para aguentar, até porque não há outro jeito.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])