Chega. Só tenho falado de porcarias. Quando não é o vírus, é o Bolsonaro. Ou os dois juntos, o que é porcaria demais para o gosto de qualquer ser vivente. Chega, mesmo. Prefiro lembrar das coisas boas que ficaram também no isolamento, mas que, empacotadas e resguardadas, podem um dia voltar. Talvez não exatamente como eram, boas, porém, de qualquer jeito. E – quem sabe? – pode ser até que melhores.
Pescar no lago do Breu, por exemplo. Pena que o Manoel, nosso cicerone para aquelas bandas, teve a péssima ideia de morrer. Mas o caminho está marcado. Subir o rio Purus, atravessar os lagos oceânicos do Aiapuá e do Uauá-Açu, desfrutar da navegação em um paraná quilométrico, e jogar a linha n’água para esperar a chegada inevitável do tucunaré. Quando nada, de uma sulamba, peixe que era desprezível, mas que agora, apelidado de aruanã, faz a delícia de quem nunca provou um pirarucu de casaca. Ou mesmo uma sardinha bem torrada, ainda que vendida a preço de ouro nos flutuantes do Tarumã.
Na noite de setembro, sem lua e sem nuvens, ficar jiboiando na tolda do barco, com o uísque ao lado e bolacha de motor como tira gosto, para se deixar envolver pelas estrelas que, em miríade, incendeiam o céu amazonense, num espetáculo que não é a pena deste humilde escriba capaz de retratar. Talvez o nosso grande Chico da Silva pudesse fazê-lo. E vem a pelo, já que só quero falar do bom e do belo, lembrar o “Amazonas, meu amor”, hino que ele compôs em homenagem à nossa terra e que, dependesse só de mim, seria oficializado como hino do Estado. “Eu amo este rio das selvas/Nas suas restingas meus olhos passeiam/O meu sangue nasce das suas entranhas/E nos seus mistérios meus olhos vagueiam”. Lindo; simplesmente lindo. Chico é tão bom que a gente se delicia com ele, mesmo quando compõe e canta toadas para o boi contrário. Mas lá fundo, acho mesmo que seu coração é azul e branco. “Bate, que bate e bate/Coração azul e branco/No peito desta galera que faz do canto um encanto/Azul e branco é da cor do céu/O diamante na aba do meu chapéu”.
Lá volto à pescaria. Impossível não lembrar da primeira de que participou meu neto Lauro. Hoje é um belo rapaz às vésperas de completar dezessete anos. Mas tinha apenas dez, quando do evento. Era no lago do Aruaú, um belíssimo recanto à margem esquerda do Rio Negro e, para as nossas distâncias continentais, próximo a Manaus. Às quatro da tarde, a canoa deslizava pelas águas mansas e Laurinho estava a postos, com a colher mergulhada, atento para a vara e para a carretilha. O peixe bateu no seu corrico. O curumim se espantou e quis pedir ajuda. Foi-lhe, cruel, mas necessariamente, negada. E
eu apreciei toda a batalha. O tucunaré estava irremediavelmente fisgado e, pela idade e pela inexperiência, Lauro se esforçava mais que o necessário para puxá-lo. Conseguiu, e o peixe entrou na canoa, afinal, apanhado, já na borda, pelo rapiché (não encontrei a palavra no dicionário e não sei se está corretamente grafada; fica o neologismo; para mim, soa melhor do que “puçá”) do Marcos Mentira. Era um belo exemplar de seis quilos e meio. Foi a glória. Como era de praxe, Laurinho foi o herói na cerimônia de premiação por ter conseguido o maior peixe da pescaria.
E os banhos de igarapé, minha gente? Os da área urbana hoje já não servem para nada. Antes, eram límpidos e deslumbrantes. Ainda mergulhei no Tarumã-Açu, onde, num piquenique de que participava dona Joana Galante, vi a lendária Mãe de Santo tentando exorcizar uma cobra que, enxerida, queria se meter entre os banhistas. Quanto tempo fará isso? O igarapé da Ponte da Bolívia era o preferido do meu compadre Jacinto Botinelly, que, na companhia do Omar Chama, ali se deliciava com o mais perfeito tambaqui assado na brasa. Para mim mesmo, é o igarapé do São Raimundo que está enraizado na memória. De canoa, os moleques subíamos até o São Jorge, onde uma deliciosa cachoeira completava a alegria do domingo.
Só não posso esquecer da tartarugada feita sob o comando de dona Lucíola. Os deuses do Olimpo não saborearam coisa melhor. Azar o deles. Era sublime. Com a pimenta murupi era mais do que isso. Acho que a minha Velha não deixou a receita porque, outro dia, me convidaram para comer tartaruga. Em respeito à memória dela, não o fiz. Até porque aquilo podia ser tudo, menos tartarugada. Basta dizer que tinha azeitona, ervilha, ovo de galinha e maxixe. Uma heresia.
Consegui. Estou pondo fim ao texto e as porcarias ficaram de fora. É quase certo que volem, mas, por enquanto, que sua ausência me sirva de alento.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritror e Poeta – [email protected])