SONHO E MELANCOLIA – Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

A gentileza de um jovem servidor público fez com que minha companheira conseguisse estacionar o carro na avenida Eduardo Ribeiro. Cumpridas as formalidades do “zona azul”, desembarcamos ali bem próximo à esquina com a rua Saldanha Marinho. Eram cinco da tarde, da última terça-feira. Na calçada, ergui os olhos e juro que não vi o espigão à minha frente. Lá estava, ao contrário, a fachada do cine Odeon, onde vi Robert Taylor interpretar o cavaleiro Ivanhoé. Também foi lá que Charlton Heston encantou meus olhos de criança, erguendo o cajado de Moisés para separar as águas do Mar Vermelho. Os judeus atravessaram o vale, rumo à terra prometida, mas os soldados do faraó, logo em seguida, morreram sumariamente afogados, já que as águas voltaram ao normal. É, com certeza, uma das mais deliciosas lendas bíblicas e Cecil B. de Mille lhe deu vida no inesquecível “Os Dez Mandamentos”.

Juro que também vi, logo em frente, a lanchonete Fazano, onde, quando sobrava um dinheirinho, eu conseguia comer um sanduíche servido pelo Moisés. Atravessamos a rua e me deu uma vontade danada de sentar a uma das mesas do Bar Avenida. Ah, ele não existe mais e agora é uma agência bancária? Tem certeza? Olha que que eu sou capaz de jurar ter visto o professor Valois e dona Lucíola, tomando um chocolate quente. Ou seria eu mesmo que, já taludo, ali devorei não pequena quantidade da cerveja Dois Pinguins?

Não sei. O certo é que, caminhando para baixo, parei para comprar ingressos para a primeira sessão do cine Avenida. Paguei em dinheiro, é claro, mas o troco me foi dado em bombons. Ainda tentei pagar com pix, mas o bilheteiro me olhou espantado, claramente pensando: “esse velho é doido”. Assim foi que misturei os bombons com as notas de cruzeiro que me restavam no bolso. Pensei em entrar no Café da Paz para jogar uma partida de sinuca, mas me dei conta de estar acompanhado e o recinto é de um machismo bem dos anos sessenta. Mulher não entra.

Paciência. Seguimos nossa jornada e fiquei espantado por não encontrar o Bráulio Arruda ali na agência da Cruzeiro do Sul, bem na esquina com a Henrique Martins. Foi, então, que me lembrei de que estou precisando de camisas. Ora, elucubrei, é só atravessar e eu posso me fartar nas Lojas Capri, não sem antes para um pouco, ali mesmo, e desfrutar das inconsequentes conversas do Canto do Fuxico. Depois, eu dou um pulo até as livras Escolar e Acadêmica e vejo o que chegou de novo em termos de política.

Já quase na esquina da Sete de Setembro, uma moça muito simpática nos parou e, com extrema delicadeza, disse algo assim: desculpem, eu estava mostrando para

a minha irmã aqui do lado como vocês formam um casal lindo. Agradecemos. Afinal, não é a todo momento que os velhos recebem elogios em vez de porrada ou são enganados pela internet. Ficamos sensibilizados, mas isso não me impediu de voltar a querer uma cerveja e tentar ocupar uma das mesas do Bar Americano, onde as cadeiras de ferro fundido abrigavam a nata da boemia manauara.

Minha mulher, lembrando a hora, não me deixou atravessar para ir até a Esquina das Sedas, comprar tecidos para o natal, ou, talvez comprar uma calça no Palácio da Moda, que lhe fica bem ao lado. Ou, ainda, adquirir um brinquedo na loja 4 e 400. Em lugar disso, atravessamos para a calçada da Matriz e conseguimos chegar ao destino: o chafariz em frente à igreja. É que lá havia uma reunião para protestar contra a insana ideia de conceder anistia aos criminosos golpistas. Como o chafariz não funciona, alguém boicotou o carro de som e a manifestação deu em águas de barrela.

Disso me dei conta depois. É que, estando aberto o portão do Aviaquário, entrei. Minha madrinha Irene me tomou pela mão e seguimos passeando pelas alamedas. Vi o jacaré remansoso e me deslumbrei com a elegância quase boçal do pavão que, sem nenhuma humildade, desfraldou sua deslumbrante calda. Acho que foi o canto de algum pássaro a me alertar: meu senhor, saia daí; isso está imundo e malcheiroso.

Voltamos e foi já abancados no Largo de São Sebastião que vimos a noite se abater, a árvore de natal se iluminar e duas netas chegarem. Uma delas perguntou: vovô, você está bem. Estou, disse-lhe. Eu estava apenas distraído e tive um sonho com a minhas infância e juventude. O beijo recebido compensou o despertar para a realidade.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])