Três doenças – Por Felix Valois

Advogado Félix Valois(AM)

Sempre ouvi dizer que se alguém é flamenguista, leproso ou comunista, pode até ficar bom, mas ninguém acredita. Puro preconceito que ainda não foi alcançado pelo “politicamente correto”, expressão de uso tão difundido e de compreensão quase esotérica. Os hansenianos, por exemplo, já foram vítimas de cruéis discriminações ao longo da história. Basta lembrar que, no medievo, os indivíduos portadores da doença eram obrigados a andar com um badalo pendurado no pescoço. O som da sineta advertia os circunstantes da aproximação do infectado, de tal maneira que todos pudessem tomar suas precauções para evitar o contato direto e a possibilidade de contágio.

A ignorância, como sói acontecer, estava na raiz desse comportamento ofensivo à dignidade do ser humano. A medicina rastejava, envolvida pela superstição e por um misticismo exacerbado, por via dos quais todos os males eram debitados a uma conta sobrenatural, inacessível aos mortais comuns. Por sua característica deformante, a lepra era fonte de temores indizíveis, imaginando-se que seu acometimento se estava a dever a algum poder divino que, em assim agindo, revelava uma face poderosa, mas indiscutivelmente vingativa e impiedosa. Coisas transcendentes que a um incréu como eu não compete discutir.
Mas a ciência pôs as coisas nos lugares certos, qual fez o pistom no baile da gafieira, segundo delicioso samba de Billy Blanco.

A hanseníase, hoje se sabe, é passível de prevenção e de cura total, mesmo em tratamento pelo SUS, onde um exame laboratorial pode levar seis meses e uma consulta médica é marcada de acordo com as calendas gregas. Em razão desse avanço, fui informado de que já existe movimento nas casas legislativas para que seja retomado o uso do tal badalo medieval, mas agora para ser colocado no pescoço dos fumantes. Vou logo avisando que, por uma questão de decência, exigirei que minha sineta tenha corrente pelo menos de prata. Discriminem-me, mas não me humilhem. Ainda nutro a esperança de que fumantes unidos jamais serão vencidos.

Os flamenguistas são um problema mais sério. Pelo menos é o que me parece, se tomo como parâmetro os casos do Alfredo, meu filho, Luís Eduardo, meu sobrinho, Tadeu Nery e Rinaldo Buzaglo, meus amigos. São definitiva e irreversivelmente fanáticos. Eu que, no futebol, torço apenas pelo Fast Clube (por incrível que pareça) e pela seleção brasileira (mesmo depois dos sete a um e das infindáveis quedas do Neymar), fico boquiaberto quando ouço a intensidade do grito “pega, f.d.p.” depois que o Mengão consegue “balançar as redes adversárias”, principalmente se o gol é “uma pintura”, conforme gostam de alardear os narradores do futebol televisivo ou radiofônico.

Para eles, o Zico foi o maior craque de todos os tempos, deixando no chinelo Pelé, Garrincha e Ronaldo Fenômeno. Recusam-se a comparar o ídolo com qualquer jogador estrangeiro, mas é suficiente a sumária eliminação dos nossos três compatriotas citados para se ter a dimensão dos arroubos de entusiasmo de que são capazes os adeptos da seita.
Uma advertência se faz necessária: é preciso muito cuidado e diplomacia ao conversar com um flamenguista.

Sensíveis, eles podem chegar à beira de uma apoplexia se o interlocutor cair na besteira de elogiar o Vasco. Aliás, nem elogiar é preciso; basta uma simples menção ao time de São Januário para que uma carga de imprecações tenha início. “Merda” é a palavra mais doce e suave com que eles conseguem se referir ao adversário, considerado um rebotalho do universo futebolesco. Como se vê, se o diagnóstico pode ser feito por simples observação, o tratamento (se é que existe) não parece ser tão singelo. Está muito acima da capacidade do SUS.

E os comunistas? Ah, os comunistas! Estes têm que ser considerados à parte, em razão das peculiaridades que os cercam. Adianto, para não causar suspense, o meu convencimento de que o verdadeiro comunista não tem cura. Indagar-me-ão: e existe, então, falso comunista? “E eu vos direi, no entanto” que é o que mais se vê. Alguns acham que o são só porque se filiaram a um partido político, outros porque pensam que sê-lo é uma forma de conseguir algum tipo de destaque.

Todos os desses tipos são perfeitamente curáveis, mesmo que tratados por inócuos placebos. O grave é que a cura tem um efeito colateral devastador: ela traz consigo a infecção pelo pavoroso germe do anticomunismo, moléstia que se manifesta por ódio intenso, crises de raiva, salivação abundante e desmaios histéricos.

Já os que se forjaram nos princípios do marxismo-leninismo, os autênticos, os verdadeiros, são imunes a qualquer agressão de agentes externos, independente de partidos e agremiações. Abriram seus corações para o mundo, cultivaram o sentimento de fraternidade universal, baniram de seus pensamentos a desigualdade, a injustiça e os preconceitos, cultivando apenas a esperança de erguer uma sociedade justa e igualitária, em que a miséria seja mera referência do lixo histórico. Para isso não existe, nem precisa existir, cura. Já antevejo meu atestado de óbito, declarando como “causa mortis” comunismo crônico.(Félix Valois é Advogado, professor, escritor e poeta – [email protected])