Diz a reportagem aqui do Diário que foram registrados na polícia mais de quinhentos casos de violência contra idosos, no primeiro semestre deste ano. Manifestaram-se através de maus tratos, abandono, discriminação ou simplesmente desprezo e discriminação. Todas elas formas abjetas de tratar os velhos, assim como se fôssemos trastes jogados ao léu, sem nenhuma serventia a não ser aquela duvidosa de onerar os mais jovens, tirando-lhes preciosos momentos de suas ocupações, a transtorná-los no trabalho ou no lazer. Triste retrato de uma sociedade que se deixa engolfar em onda tão temerária de esquecimento e ingratidão, olvidando que os mais antigos ajudaram a construí-la e a erguê-la, nela empregando sua força de trabalho, com ela louvando os momentos de glória e com ela chorando as horas de tragédia.
Quantos amanharam a terra com seu suor, fertilizando-a com o adubo talvez da esperança para que de lá brotassem os alimentos, sustento da vida! Quantos outros carregaram sobre os ombros, então fortes, o peso cruel de serviços estafantes, desenvolvidos em fábricas inóspitas em troca de aviltante paga! Eram pais cujo amor pelos filhos não se podia traduzir nos mimos dos brinquedos eletrônicos, mas que extravasava ternura no carinho com que depositavam ao pé da rede o tosco caminhãozinho de madeira, o único que pudera deixar o Papai Noel. Eram mães que encarquilharam os dedos, lavando a roupa alheia, entregando-a passada e engomada para que sua própria filha pudesse ter, no domingo, pelo menos o vestido de chita com que vestisse seus sonhos de adolescente ou embalasse suas fantasias pueris, encarnadas na boneca de pano com que brincava de casinha e com que dividia o chibé doméstico.
Hoje são os velhos chatos, as velhas caducas, que teimam em viver uma vida de inutilidades e ainda exigindo cuidados dos que, ora bolas, têm mais o que fazer. Que o façam, que façam tudo, mas que por um instante, um volátil minuto que seja, venha-lhes à lembrança a certeza de que lidam com seres humanos que também foram crianças, que também foram jovens, que igualmente já pulsaram no vigor da idade adulta, tendo apenas sofrido a implacável ação do tempo, esse desfazedor de ilusões e cruel gerador de deformidades estéticas. Já tiveram a época de, “no azul da adolescência”, deixar que seus sonhos soltassem as asas, apenas para comprovar que, “se aos pombais as pombas voltam”, eles, os sonhos, “aos corações não voltam mais”. Por isso, de sonhos estão vazios seus corações, mas não o estão do orgulho do dever cumprido e (por que não?) da esperança de que, no menosprezo de muitos, esteja oculta pelo menos a pretensão de poder se igualar aos menosprezados.
Caminham lentos os velhos. É verdade. Mas, tenham dó, jovens de todo o mundo! É que já não os embala a brisa fresca que, de envolta com a imprevisão, vai arejando os caminhos da mocidade, permitindo-lhe vaguear com desenvoltura por veredas muitas vezes desconhecidas. Querem que os acompanhemos nessas jornadas? Não é possível. E mais grave: ainda que pudéssemos, não deveríamos, porque a força que resta há de ser empregada com precaução e cuidado, pois, já descendo a montanha, é preciso chegar ao sopé com o mínimo de firmeza e tranquilidade.
Dão-nos apelidos. Assim é que alguns nos chamam de anciãos ou de idosos. Os mais irreverentes, de caquéticos. Outros rotulam a nossa faixa etária, intitulando-a de terceira idade. Outros, ainda, num rasgo de humor negro ou de amarga ironia, dizem que vivemos na melhor idade. Nada disso importa. A verdade verdadeira é que somos velhos e pronto. E aos velhos já não é dada aquela multiplicidade de escolhas tão a gosto da juventude. Mas, vamos voltar a pensar: por que desprezar os provectos? Só por o serem? Que sentido faz isso se o que eles representam é, nada mais, nada menos, a certeza de que a partir deles brotaram os jovens, com eles também se construiu o mundo?
Não tenha vergonha do velho que está ao seu lado. Ele não ouve bem? Paciência. É que tantas já ouviu que o tempo hoje o poupa de escutar algumas sandices. Mas ele também nem come direito. Como querem que ele o faça se de tão amargos pães ele já experimentou o sabor ao longo da existência? Muitas vezes ele nem se lembra do que lhe foi dito ainda há pouco. Tenha certeza, porém, de que na sua lembrança estão marcados a ferro e a fogo os momentos, todos os momentos, em que ele, qual você, viveu, sonhou, riu ou chorou, teve alegrias ou decepções, tudo enfim que compõe a humana lida. Só não o trate como se uma coisa fosse. Ele não o é. Ele é apenas e enormemente um velho de cujos olhos, se às vezes brotam inexplicáveis lágrimas, jorra também aquele olhar compassivo com que ele quer expressar esta imensa verdade: sou um ser humano; tratem-me com respeito. Se não me podem dar amor, deem-me, pelo menos, o favor de sua gratidão e de sua decência.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])