Tive a oportunidade de ler, para efeito de revisão gramatical, o esboço da dissertação com que a professora Ana do Nascimento Guerreiro busca a obtenção do grau de Mestre em História, pela Universidade Federal do Amazonas. Tem o título de “Vilas Urbanas de Manaus – Herança cultura, lugares de memória e modos de viver (1900-1950)”. Para quem, como eu, nasceu, vive e vai morrer em Manaus, e ama esta cidade, foi um deslumbramento. Passaram, qual imagens vivas, pelos olhos deste velho, os ambientes das minhas infância e juventude, transportando-me no tempo e me enchendo de uma saudade que muitos dirão ingênua, mas que eu tenho apenas como ternura pelo lugar que me serviu de berço.
De repente me vi saindo do Colégio Estadual do Amazonas e, na rua Rui Barbosa, morcegando o bonde de carga que ia até o Plano Inclinado, na Aparecida. De lá, a travessia a pé pelo interior da Serraria Matias e a chegada à rua Leonardo Malcher, tudo à margem esquerda do igarapé de São Raimundo que, então, fluía sereno e límpido na sua caminhada para o abraço com o gigante de ébano.
Vi-me, também, nas rodas semanais do Canto do Fuxico, em plena Avenida na esquina com a Henrique Martins. Era assim; era apenas “avenida”, como se outro nome não tivesse, porque todos a conheciam. Lembra a autora: “O eixo principal que organizava esse espaço, quando inaugurado em 1901, foi denominado Avenida do Palácio, pois receberia um suntuoso edifício sede do Palácio do Governo em seu platô mais alto (projeto nunca concluído). Mais tarde teve seu nome alterado para Eduardo Ribeiro, em homenagem póstuma. Porém, era chamada pela população simples de “Avenida” e simbolizava essa nova cidade”.
Nominam-se as Vilas e a simples leitura da lista é um relicário de saudades, a despertar nos manauaras de boa cepa as lembranças de um tempo que já vai longe. Vila Nair e Vila Ercília, na avenida Joaquim Nabuco; Vila Portela e Via Arminda, na rua Visconde de Porto Alegre; Vila Ninita e Vila Baima, na avenida Sete se Setembro; Vila Rezende, na rua Alexandre Amorim; Vila Lucy, na rua Igarapé de Manaus; Vila Augusta, no Beco José Casemiro. Esclarece a professora Guerreiro que essas vilas eram um avanço em relação às “estâncias”, “porque são unidades habitacionais não demonizadas pela opinião pública e aceitas como habitações baratas e higiênicas”.
E segui a minha viagem imaginária, vendo a autora evocar o cais do porto que, na citação de Jefferson Peres, era “o ponto mais importante da cidade, o velho roadway, como todos o chamávamos”. Era ali que, aos domingos, a mão negra e forte da minha madrinha Irene segurava a do garoto franzino que, deslumbrando pela beleza sem par do Rio Negro, tinha que ser contido na correria inconsequente que aquele passeio gratuito proporcionava. Depois, a volta para a casa paterna, onde, à luz de vela, eram feitas as tarefas escolares, antes do sono na rede quase sempre envolta pelo mosquiteiro.
A lembrança dos cinemas é um capítulo à parte. O Polytheama e o Guarany (antes, Alcazar) eram vizinhos. O primeiro ainda guarda resquícios de sua fachada, mas o outro sucumbiu, foi destruído pela ganância imobiliária e já não recorda, nem de longe, as matinais festivas em que os desenhos animados embalavam os sonhos da gurizada. Igualmente vizinhos, o Avenida e o Odeon estavam ali, na rua principal. Naquele, a sessão das moças das sextas-feiras era um desfilar de dramalhões mexicanos, com a beleza de Maria Felix e Libertad Lamarque e o charme de Arturo de Córdova. Já o Odeon fez a revolução: os manauaras foram apresentados a uma sala com ar refrigerado, o que era uma novidade na província de pouco mais de cem mil habitantes. Era um oásis.
Por coincidência, enquanto escrevia este texto, recebi do meu amigo Tadeu Nery uma publicação extraída do blog do Rocha, intitulada “Salada de Manaus – décadas de 60 a 80”. Diz-se lá: “Para quem nasceu em Manaus ou aqui viveu nessas décadas, com certeza os nomes que servem de ingrediente da nossa salada têm tudo a ver, lembram do nosso passado, da nossa infância, adolescência e do início de nossa juventude”. Segue-se um extenso glossário, do qual vou extrair alguns itens, concordando plenamente com as recordações que eles despertam: Maranhense, Canto da Peixada, Solar da Olímpia; Little Box, Pepeta Close e Astrid; Lá Hoje, Tia Chica e Saramandaia; Corre Campo, dança do cacetinho e tribo dos Andirás; Ferro de Engomar, Canto do Quintela e Mocó; cibalena, pomada Minâncora e jalapa pião; Clube da Madrugada e Projeto Jaraqui; vitrola nivico e discos de vinil; rala-rala, pirulito e filhós.
Quase lagrimo. Daqui a um mês minha cidade vai completar trezentos e cinquenta anos. Não consigo vê-la adulta. Para mim, ela é ainda a mesma criança que brincou comigo de manja e de camone e com a qual mergulhei no igarapé do Mindu e na Ponte da Bolívia. A criança tranquila e serena que desfilava suas tardes domingueiras pela Praça da Polícia e que via o Bombalá regendo a banda militar que passava. O tempo também passou. Tudo são saudades.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])