“55 anos de ditadura, devemos comemorar?” – Por Luciana Figueiredo

Advogada Luciana Figueiredo(AM)

Amplamente noticiado em sites e jornais, o presidente Bolsonaro no início da
semana determinou que, no domingo 31 de março, fossem comemorados os 55 anos
do golpe militar de 1964. Após as devidas repercussões e ajustes, na quinta-feira
tivemos a seguinte afirmação: “Não foi comemorar, foi rememorar, rever o que está
errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro”.

Por óbvio que não tenha a menor pretensão de escrever um artigo de análises
políticas, como magistralmente faria meu pai, mas confesso que as afirmações e
posicionamentos do presidente me incomodaram sobremaneira. Primeiro porque
cresci no meio de uma atmosfera política. Participávamos (eu e minha irmã)
intensamente, com as limitações da nossa idade, dos acontecimentos do país e sua
redemocratização, as primeiras eleições após o golpe, as diretas já, e tantos outros
movimentos. Víamos, ouvíamos e convivíamos com mentes brilhantes, tanto no Rio de
Janeiro quanto em Manaus, que muito me honraram e continuam me honrando com
seus ensinamentos.

Dessa forma, não há nenhuma possibilidade de fingir indiferença às
declarações do presidente, talvez um tanto irrefletidas. Ele já deixou claro que não
considera a tomada do poder pelos militares em 1964 como sendo um golpe, que ele
não existiu, que não tivemos ditadura, que, assim como um casamento, todo regime
tem seus probleminhas, no caso em questão, 21 anos de “probleminhas” já que o
período de exceção que o Brasil viveu durou de 1964 até 1985.

Que fique claro, não vivi os piores anos do golpe, na verdade quando nasci o
pior já havia passado. No entanto, não há como negar que foi um período de censura
prévia, de cassação e suspensão de direitos, ausência de eleições diretas, fechamento
do congresso, prisões e mortes. Pelo relatório final, apresentado pela Comissão da
Verdade em 2014, mais de 400 pessoas foram mortas por questões políticas. Se
pensarmos nos números atuais de violência no país, essa quantidade pode não chamar
mais tanta atenção, já que em 2016 tivemos mais de 62.000 homicídios segundo o site
do Ipea, mas eram outros tempos, outra vida.

Não almejo entrar na seara de como estaria o país se não tivesse acontecido o
golpe, se seríamos ou não mais ou menos comunista, na verdade o que não podemos
negar é que o Brasil passou por um período em que a democracia foi interrompida, em
que houveram perseguições, cassações de políticos, Leonel Brizola, Gilberto
Mestrinho, Darcy Ribeiro e Almino Affonso, incontáveis e incalculáveis prisões. Meu
pai – Paulo Figueiredo – foi preso e interrogado como subversivo, junto com ele vários
de seus amigos, com os quais convivi e convivo, como Amazonino Mendes, Edgar
Ribeiro, Arlindo Porto e tantos outros que ele cita em seu livro.

Em 2014, por ocasião dos 50 anos do golpe, papai publicou um livro sobre o
tema, “O Golpe Militar no Amazonas – Crônicas e Relatos”. Nele conta como se deu o
golpe aqui em nosso estado. Através da sua leitura, podemos viajar pelas suas
lembranças, e concluir que, sim, ele existiu.

Eram jovens, românticos por excelência, como ele bem descreveu, que
sonhavam com um mundo novo, igual e justo, e que, com o “golpe, a truculência
impôs-se sobre a ternura, com a falência da fraternidade e do sonho”. Ele também
relata em seu livro, que no Amazonas não tivemos tortura física, mas um profundo
sofrimento de ordem moral, desalento e dor, que só quem viveu aqueles tempos e
sentiu a aflição da incerteza, terá eternamente um sinal de alerta a qualquer investida
contra a democracia: “o bem político mais precioso do cidadão livre”.

De fato, trata-se de uma data histórica, de um momento que não pode ser
esquecido, por nenhum dos lados. Na democracia, o poder é exercido pelo povo, e o
mais importante, é através dela que se garantem e respeitam os princípios que
protegem a liberdade humana. A liberdade de expressão, de religião, a proteção legal,
e as oportunidades de participação na vida política, econômica, e cultural de uma
sociedade. Repita-se, não há como negar que, durante os 21 anos em que os militares
governaram a democracia foi violada, em especial nos primeiros anos do golpe, por
tudo que a história nos conta e nos mostra.

É impossível portanto, admitir que não houve golpe ou ditadura. Direitos foram
suspensos, pessoas perseguidas, exiladas, presas, desaparecidas. A censura era
implacável, e, em respeito a todos os que viveram naquela época e, principalmente em
respeito ao país democrático no qual hoje vivemos, devemos sim lembrar do dia 31 de
março ou 1º. ou 2 de abril, a data em si é o que menos importa, o mais importante é
que, se hoje temos um presidente eleito de forma legítima, pela maioria dos
brasileiros, se podemos livremente expressar nossas opiniões, é graças à democracia
reconquistada após longos e duros 21 anos.(Luciana Figueiredo é Advogada)