CARLOS GOMES – Por Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

Nos anos sessenta do século passado, quando a ditadura militar já tinha imposto o reinado das sombras no país, foi lançado um livro intitulado “Mundo, Mundo, Vasto Mundo”. O autor me ofereceu um exemplar, com esta dedicatória: “Para Felix Valois, entre os amigos, companheiro; entre os companheiros, amigo”. Quanta ternura! Só podia mesmo partir daquela figura profundamente humana que era Carlos Gomes, conhecedor profundo da língua portuguesa, da qual era emérito professor.

Carlito, como eu afetuosamente o tratava, era infenso a qualquer tipo de vaidade. Perguntei-lhe, certa vez, a razão de ainda não ter ele se candidatado a uma cadeira na Academia Amazonense de Letras. Olhou-me como se estivesse eu falar de coisas esotéricas, inacessíveis à ciência e ao entendimento humano. “Não tenho nenhum motivo e nenhum mérito para receber a láurea acadêmica”, foi, em síntese, a resposta que recebi. Invejável modéstia! Até porque, se alguma coisa lhe faltasse no campo da literatura, o livro de que falei teria preenchido qualquer lacuna, eis que se trata de uma coletânea de contos capaz de ombrear com quantas existam, escritas na língua materna.

Militávamos no Partido Comunista Brasileiro. A clandestinidade tornava tudo muito difícil e perigoso. O Partidão, no Amazonas, era rigorosamente supervisionado pela figura histórica de Geraldo Campelo que, ao lado de sua companheira Maria Pucu, jamais abandonou o sonho da construção de uma sociedade justa e igualitária, banindo-se, para sempre, a exploração do homem pelo homem. Os jovens nos incorporávamos ao ideal e, nas nossas “organizações de base”, deixávamos correrem soltos os sonhos com que íamos tecendo a teia da igualdade, irmã gêmea da liberdade. Carlito dava o toque cultural a esse derramar de esperanças, sem o qual a mocidade não faz jus ao próprio nome.

Lembro-me do episódio em que um camarada nosso, também versado nas coisas do idioma, quis aventurar-se pela seara da literatura. Escreveu um conto e deliberou submetê-lo ao crivo do Partidão. Imaginem quem foi o incumbido de fazer a análise e emitir opinião! De rigorosa honestidade, Carlos Gomes assim se manifestou: “Do ponto de vista ideológico, nenhum reparo a fazer. Literariamente, contudo, não recomendo a publicação”. Nenhum pedantismo, nenhuma soberba, apenas a voz da sensatez, sugerindo ao companheiro o aprimoramento de seus dotes de escritor.

Descendente de portugueses, Carlito amava as coisas da “santa terrinha”. Mas, irônico, foi ele quem me chamou a atenção para a curiosa passagem do hino de Portugal, em que o autor, num rasgo de empolgação, conclama os patriotas a “contra os canhões marchar, marchar”. Advertiu-me ele: “Não me venhas dizer que é coisa de

português”. Claro que não disse, nem pensei, até porque seria eu a última pessoa a falar qualquer coisa que pudesse, mesmo superficialmente, ferir a sensibilidade daquele homem de uma doçura extrema.

Semana passada, Carlito partiu. Atravessou o espelho, na expressão de Simão Pessoa. A respeito, a professora Leyla Martins Leong, expressou: “Tive a fortuna de ser sua amiga, sua aluna na Universidade Federal do Amazonas, sua leitora e admiradora. Conversar com ele era na verdade um privilégio de poucos. Um autor que vale a pena ser lido e relido por puro prazer artístico”. O poeta Dori Carvalho complementa: “Um bom homem, bom amigo, bom professor e um talento literário”. O professor Odenildo Sena arremata: “Que triste. Carlos Gomes foi meu professor de sintaxe na Ufam. Professor e amigo. Tomamos muita cerveja no Bar São Francisco. Carlos era também um bom contador de piadas. Vai para esse mundo, mundo, vasto mundo”.
ail.com)

Eu perdi um querido amigo e companheiro. O mundo literário amazonense perdeu uma de suas maiores expressões e está no dever de reverenciá-la. Só posso dizer em sua memória: as “vítimas da fome” e os “famélicos da terra” continuam de pé.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmail.com)