CASOS DE MANAUS – Por Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

 

Dos cabarés da minha juventude, nesta bela e soberana cidade de Manaus, um dos mais conhecidos, frequentados e animados, era o Shangri-Lá. É certo que ele e todos os seus similares tinham basicamente a mesma estrutura e a mesma forma de funcionamento, o que, de resto, não poderia ser diferente, já que a destinação e o objetivo eram idênticos. Um enorme barracão coberto de telhas de barro, com uma pista central de dança, toda ela contornada por mesas e cadeiras, e lugares especiais para o bar e para a orquestra. Na parte traseira, isolada e protegida por um leão de chácara, ficava a ala dos quartos, onde se resolviam, no final da noite, os amores mais ou menos profundos, que se criaram e alimentaram pela cerveja e pela música brega, destacando-se, nesse particular, as canções de D. Pedrito, uma das quais romanticamente afirmava que “tus ojos, tus ojos me puenen loco; tus ojos, tus ojos me van a matar”.

Essas casas tinham seus códigos de conduta específicos que, embora não escritos, deviam ser rigorosamente respeitados. E eram, as mais das vezes. Mas as transgressões aconteciam. Uma das mais graves era “tirar graça” com mulher que estivesse acompanhada. Essa monogamia circunstancial era, obviamente, restrita ao local e ao tempo de união do casal, ali e então, naquela noite e não mais. Se essa regra de fidelidade era eventualmente infringida pela ousadia de um pinguço desavisado, o julgamento, a sentença e a execução da pena eram imediatos e irrecorríveis, terminando, quase sempre, numa pancadaria generalizada, quando tudo podia acontecer, menos a interferência da polícia.

Havia também alguns casos de namoros permanentes. Afinal, as “operárias do amor” podiam se despir com relativa facilidade, mas não se despojavam nunca da sua condição de seres humanos. Entretanto, se o namorado de uma dessas damas chegasse ao cabaré e a encontrasse em pleno exercício profissional, bebendo ou dançando com algum “rival” de ocasião, haveria de ter a dignidade de recolher o que existisse de ciúme, aguardando o fim da jornada de trabalho para, só então, estabelecer o colóquio com a sua escolhida. Assim, os laços de afeto não eram rompidos, nem se estabelecia um imbróglio que, além de não levar a nada, poderia afetar de modo irreversível o ambiente de cordialidade e alegria que sempre devia dar a tônica. Era tudo civilizado e harmônico, o que, infelizmente, não chegou aos ouvidos do sábio Platão, que poderia, a partir do exemplo, ter mudado as diretrizes da sua República.

Foi no Shangri-Lá que aconteceu um dos fatos mais sangrentos da história dos cabarés manauaras. Lamentável e episódico, deixou marcada por longo tempo a noite da cidade, causando rebuliço e estremecimento no fechado mundo jurídico-forense da capital. Tento contar o caso como o caso se passou, valendo-me apenas da memória, sem rebuscar fontes de pesquisa, até porque acredito que nem o Google dele tem registro.

Foi assim: um senhor de meia idade, bem apessoado e com situação financeira estável, era frequentador habitual da casa noturna. Diariamente, sua presença era quase obrigatória e os garçons cochichavam entre si quando ele tardava ou não aparecia. Tamanha habitualidade tinha causas e efeitos entrelaçados, eis que, como se há de intuir, gerou intimidade com uma das moças e estabeleceu a necessidade de amiudar os encontros. Era o perfeito acoplamento da tampa com a panela.

Esse homem era juiz de direito. Como fazia ele para conciliar leis, decretos e audiências com o tempo despendido nas noitadas, é coisa até hoje cercada do mais completo segredo. O certo é que conciliava e não se tem notícia de que as duas atividades se tenham prejudicado reciprocamente, de tal maneira que, se a cerveja prosseguia sendo consumida rotineiramente, isso não impedia que, na manhã seguinte, tivesse lugar a outra rotina dos interrogatórios e da oitiva de testemunhas, além de outras chatices que fazem parte inseparável do labor judicante.

O doutor era tratado com deferência particular. Ele era um cliente especial e os atendentes do bar lhe disputavam as gorjetas. Numa noite tudo desandou. Dizem os mais velhos que foi um ataque de ciúmes. Outros, que foi apenas um desentendimento passageiro. Mas a verdade estava lá estampada: atingido por cinco tiros de revólver disparados pelo doutor juiz, jazia no salão o corpo da moça objeto dos seus afetos.

Aí não teve como evitar a polícia. Instaurou-se o inquérito e foi oferecida a denúncia pela prática de homicídio doloso. O julgamento foi feito pelo Tribunal de Justiça, em razão das funções exercidas pelo acusado. A defesa esteve a cargo de um advogado altamente conceituado que, fazendo jus ao renome, operou um milagre. O órgão julgador desclassificou o homicídio para culposo, aplicou a pena de dois anos de detenção e concedeu “sursis”. Estava tudo no seu devido lugar. Só uma coisa não tenho como esclarecer aos meus poucos leitores: não sei se a culpa do doutor se manifestou por imprudência, negligência ou imperícia. Mas qualquer uma daria no mesmo.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])