Énois: Programa contribui na construção de novas narrativas sobre as questões climáticas

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“Eu quero ser a voz da floresta. Eu quero ser a própria comunicadora de dentro da floresta”. Esse desejo da ativista Raiara Barros, 18 anos, que vive na Reserva Extrativista Chico Mendes, no município de Xapuri, no Acre, fez a jovem compreender a comunicação como uma aliada na defesa do seu território. Filha de Raimundo Mendes de Barros, mais conhecido como Raimundão, primo de Chico Mendes, herdou pelo exemplo da família, principalmente do pai, a militância ambiental.

Trilhando sua caminhada na defesa dos povos da floresta pelo direito de preservar seus modos tradicionais de vida, a jovem atualmente faz parte de vários coletivos como os Guardiões da Amazônia, Engaja Mundo, Comitê Chico Mendes, entre outros. Foi a partir da participação nestas redes que Raiara conheceu a Énois e ingressou no programa Jornalismo e Território – Ciclo 2, direcionado para os estados do Acre e Rondônia.

Jornalismo e Território é um programa da Énois iniciado em 2019, pelo qual já passaram mais de 160 jornalistas e comunicadores locais, discutindo e compartilhando ferramentas para melhorar a cobertura de políticas públicas em seus territórios. Na edição 2022, o curso é voltado a discutir e aprofundar o olhar para a cobertura da crise climática na Amazônia e no Centro-Oeste, mantendo a premissa da interseccionalidade para o território que habita o público da formação.

O Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), divulgado em março deste ano, fez um alerta: a Amazônia e o Nordeste brasileiro são altamente vulneráveis às mudanças no clima, e essa vulnerabilidade climática pode ampliar a desigualdade social presente no Brasil. Logo, se faz necessário discutir a cobertura da mídia sobre essas alterações climáticas.

Esse ano, o curso, que é voltado para jornalistas, comunicadores e ativistas das periferias de todas as capitais da Amazônia Legal, Goiás e Mato Grosso do Sul, contou com a participação de 52 jornalistas até o mês junho. Dividido em ciclos, o programa teve um diferencial no público da região do Acre e Rondônia, como destaca Jessica Mota, coordenadora do Jornalismo e Território, “o ciclo 2 teve um perfil mais de ativistas, principalmente do Acre, engajadas com a luta pela floresta, de organizações e movimentos sociais, moradores de comunidades extrativistas”.

A Alana Manchineri, indígena do povo Manchineri, localizados no estado do Acre, atua na comunicação da MATPHA, organização indígena em contexto urbano, e também participou do segundo ciclo do programa. Sua história com a comunicação começou em 2019, após realizar uma formação sobre cobertura de eventos. “Eu senti a necessidade de ter uma comunicação voltada para as questões indígenas. Sou do movimento indígena, mas nunca tinha pensado na comunicação como um instrumento de luta do movimento”, conta a militante do movimento de mulheres indígenas e atualmente articuladora da Rede de Jovens Comunicadores Indígenas da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Rede de Comunicadores Tambores da Selva da Coordenação de Organizações Indígenas Bacia Amazônica (COICA).

Raia, Alana e mais 50 inscritos no ciclo 1 e 2, do programa, participaram das formações online. Durante os encontros online, os e as participantes refletiram sobre o tema da justiça climática a partir da exposição de Rodrigo Jesus, porta-voz da campanha pelo clima do Greenpeace Brasil. Também aprenderam com Sanara Santos, agente de formação da Énois, como produzir e distribuir uma pauta a partir do exercício do mapa afetivo. Além de discutir sobre a produção colaborativa e sustentabilidade. “A gente faz uma metodologia que é mão na massa, estimula que as pessoas olhem para seu território. Vamos pensar que a gente não quer falar do estado do Acre, da situação do Brasil… a gente quer falar da sua reserva extrativista, de onde você mora, ou da sua cidade”, comenta Jessica.

Uma das metodologias, que chamou a atenção de Alana, foi o mapa afetivo. O instrumento convida os sujeitos a olharem para as pessoas e histórias dos seus territórios, apontando suas vivências, trocas, engajamentos e relações com esse espaço. “O conhecimento tem que ser democrático, todo mundo tem que conseguir acessá-lo. Nessa perspectiva de unir as lutas, o mapa afetivo contribui muito, porque quantas pessoas são do mesmo estado, mas a gente não consegue se cruzar, mesmo tendo lutas muito semelhantes?”, exemplifica a militante indígena.

O programa Jornalismo e Território construiu uma teia diversa, até setembro de 2022, selecionou 84 bolsistas, com público majoritariamente feminino, as mulheres representaram 89,9% das inscrições. Outro dado que merece destaque é a participação de pessoas autodeclaradas pardas, seguidas por pessoas brancas (44,9%).

Tecer de novas redes

O Jornalismo e Território é uma ação em rede, que envolve a Énois, os/as participantes do programa e seus territórios. Foi essa conexão de conhecimento, essa troca de informações e experiências entres diversos profissionais, pertencentes ou não a uma mesma região, que marcou a Alana. “A gente cresce nosso network, nossa rede cresce. Tanto fortalece a nós, porque está trazendo uma nova narrativa, como a Énois. A gente traz também essa bagagem, esse valor agregado dos nossos conhecimentos, das nossas ações e organizações para dentro da Énois”, comenta a comunicadora.

Foi através da rede de jornalismo local da Énois que Alana ficou sabendo da seleção do programa Diversidade nas Redações. Ela hoje participa da sua segunda formação ofertada pelo laboratório de jornalismo e é uma entusiasta do programa, ajudando a divulgar o ciclo 3 do ‘Jornalismo e Território’, que acontece entre agosto e setembro. “Assim que abriu a seleção eu joguei na lista dos comunicadores da Amazônia. Eu acho que duas pessoas foram selecionadas… Essa possibilidade de conexão faz com que a gente consiga reverbera para outras pessoas, para outros coletivos, para outros comunicadores”, argumenta.

Esse tecer de redes também chegou na Reserva Extrativista Chico e tem ajudado a Raiara a mobilizar a juventude para partilhar o conhecimento colhido durante o programa. “Eu estou criando o Porongas, a ideia é ser um coletivo de jovens para somar vozes. Na Resex está tendo muitos casos de jovens que não se interessam por nossas lutas. Então, eu pensei em criar esse coletivo para gente poder somar forças, para lutar pelo nosso bem maior que é a Amazônia”, explica a jovem.

Contextualização da crise climática na Amazônia e no Centro-Oeste

O estudo apresentado na segunda parte do 6º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), aponta que as secas na região amazônica, associadas ao desmatamento e queimadas poderão transformar o cenário da floresta úmida, presente no bioma, em regiões de savana. Já os estados do Acre, Rondônia, Pará e o sul do Amazonas são apontadas como regiões que devem sofrer com o aumento do risco de enchentes mais frequentes e extremas.

Essas mudanças climáticas causam consequências no cotidiano das pessoas, como escassez de água, insegurança alimentar, deslocamentos populacionais, extinção da biodiversidade, aumento de doenças, entre outros impactos, vivenciados principalmente pela população das periferias, povos tradicionais e demais grupos considerados como minorias. “Das desigualdades históricas que existem no Brasil, os movimentos percebem que a crise climática está muito ligada à uma crise humanitária que é impulsionada pelo sistema de produção capitalista. Então, não tem como dissociar o clima da vida cotidiana. Tanto do espectro institucional político, quanto da sociedade civil”, argumenta Rodrigo Jesus, porta-voz da campanha pelo clima do Greenpeace Brasil.

Esse recorte social relacionado às questões das mudanças climáticas, infelizmente, é pouco debatido pelos veículos de massa. Como explica Rodrigo, a mídia aborda as questões climáticas numa perspectiva da naturalização dos processos. “É na ideia que a chuva causa; o deslizamento matou; a seca faz com que não haja cultura, ou seja, não tem um processo de responsabilização dos setores que dão manutenção a esses impactos ambientais”, afirma. Segundo ele, na contramão da mídia tradicional, o jornalismo local, como os veículos territoriais, produzem “uma notícia engajada, que é uma notícia que produz conhecimento, que produz mobilização e não é apenas um acervo de notícias ruins para as pessoas ficarem depressivas ou imóveis, sem saber de como lutar”.

Diante desse cenário, a cobertura da crise climática e demais temas relacionados com essas questões, entra numa narrativa de luta de classes, de modelo de sociedade. De acordo com essa percepção, Rodrigo aponta que trazer esse debate para uma formação de jornalistas, ativistas e comunicadores populares, contribui significativamente na mudança desse discurso e, assim, possibilita abrir caminhos para mudar mentalidades, através de um jornalismo mais comprometido, com responsabilidade social. “Eu tenho percebido que as pessoas que têm participado desse processo de formação, tanto estudantes que entraram agora ou estão finalizando o curso, quanto profissionais que já estão no mercado, têm percebido seus vícios de redação. Muitas vezes eles explicam isso na oficina”, conta.

Durante o curso, é realizada a leitura crítica das manchetes que abordam as questões climáticas. Ele relata que os participantes percebem que “há um padrão nas redações, primeiro a gente fala do fenômeno climático, depois dos impactos e do que o governo federal e estadual fez. Eles falaram assim, “poxa, eu não quero repetir isso. Eu quero, sei lá, utilizar mais técnicas de storytelling, por exemplo, colocar aspectos das pessoas que foram impactadas, abordar sobre responsabilização, eu quero ter uma parcialidade, ter um posicionamento político através da minha redação”.

Essa nova abordagem pode ser vista nas cinco produções realizadas em grupo pelos participantes do programa, como o podcast “Afinal, e a justiça climática?”, produzido por Ludymila Maia, Eliandra Oro Nao Victor Manoel. O produto tem o objetivo de investigar como a justiça climática é abordada nas formações de comunicação nas universidades da região Norte, tendo como amostra a Universidade Federal do Acre (UFAC). Outro exemplo é a reportagem “Jovens da Resex Chico Mendes mobilizam discussão sobre preservação da floresta em redes sociais”, produzida por Raiara Barros, em parceria com Bruno Pacífico e Mauricilia Silva, que aborda o envolvimento da juventude na preservação da história de Chico Mendes e da floresta.

As produções são publicadas na página de reportagens apoiadas pela Énois, nossas redes sociais e as dos/das participantes e suas entendidas. Além de veículos de comunicação parceiros, que neste ciclo foram: SOS Amazônia, Planeta Amazônia e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). E, ainda, o Comitê Chico Mendes e a Associação Civil Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (MATPHA), por intermédio dos participantes.