O PROFESSOR E O FUTEBOL – Por Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

O professor Alves d’Assumpção, como filólogo que era, não transigia com solecismos nem com estrangeirismos. Não teve ele, feliz ou infelizmente, que assistir à era da informática, onde, à conta de algumas palavras realmente intraduzíveis, somos obrigados a conviver com tolices como inicializar.

Gostava de futebol o ilustre mestre. Mas não pronunciassem esse nome porque ele imediatamente repelia o anglicismo, ao argumento irretorquível de que o vernáculo estava a exigir que o jogo fosse denominado ”bolípede” ou “ludopédio”. E o gol, que para ele não era um detalhe, devia ser chamado de “tento”.

Jogavam no Parque Amazonense Fast e Nacional. Eram duas grandes equipes, mas a partida não chegava a despertar grande interesse em razão da previsibilidade do resultado: o Fast, por certo, iria golear (ou seria tentear?) seu velho freguês. Apesar disso, o professor Alves d’Assumpção acompanhava todos os lances, com o ouvido colado no imenso rádio Phillips que funcionava com oito pilhas.

Já ficou abismado o professor quando o narrador, descrevendo um lance com o máximo de empolgação, asseverou aos queridos ouvintes que Paçoca cobrou a falta rasteira, mas a bola se perdeu por cima do travessão.

No intervalo, veio ao microfone o comentarista oficial que, talvez pelo forte sotaque lusitano, gozava da simpatia do mestre.

Na análise do desempenho dos jogadores, disse o radialista a respeito de Dentinho: — Está em boa forma física. Dribla bem, cabeceia bem, tem excelente noção de colocação em campo, mas é um péssimo jogador.

Não entendeu nada o professor Alves d’Assumpção, mas, condescendente, ponderou para o filho que, ao lado, mergulhava na Antologia Remissiva, do professor Napoleão Mendes de Almeida:

— Ou estão erradas as premissas ou a conclusão é estapafúrdia.

O Parque Amazonense era um velho estádio, com instalações mais do que precárias. Contam os mais antigos que eu que ele servira como hipódromo e, assistindo a alguns jogos de futebol que lá aconteceram, diziam que eram verdadeira homenagem às origens do local.

O jogo alcançara a metade do segundo tempo, o Fast já vencia por cinco tentos a zero, quando o locutor, verdadeiramente estarrecido, anunciou que parte da arquibancada do Parque estava desabando. Desencadeada a correria e suspensa a

partida, pede a emissora que o comentarista diga aos queridos ouvintes o que está acontecendo, até para tranqüilizar a família amazonense.

— Vejo correr sangue, muito sangue vermelho, senhores ouvintes, foi a intervenção inicial do comunicador e que provocou imediatamente um desmaio em dona Antonica que, do outro lado da cidade, também acompanhava os acontecimentos, já que tinha dois filhos no estádio.

— Os facultativos das duas equipes foram acionados para prestar assistência aos feridos e a polícia trata de isolar a área da tragédia, prosseguiu.

Dona Antonica que, à custa de muita água com açúcar, recobrava os sentidos, desta vez tombou literalmente e tiveram que acionar Dona Neném, rezadeira oficial que, entre outras coisas, era imbatível no combate a cobreiros e a carnes trilhadas.

O professor Alves d’Assumpção não escondia sua apreensão, mas não perdia a fleuma. Ouviu, então, a voz impostada do comentarista:

— Agora, senhores ouvintes, para dificultar ainda mais o trabalho de socorro às vítimas, começa a chuviscar torrencialmente no Parque Amazonense.

O professor desligou o rádio.

— O pleonasmo do sangue ainda tolero, que pode ter vindo à conta de aviso tranqüilizador para a família d’Orleans e Bragança. Mas chuvisco torrencial… francamente.

E passou o resto do domingo relendo o episódio de D. Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha.(Félix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – felix.valois@gmail.com)