SEMANA SANTA – Por Felix Valois

Advogado Felix Valois(AM)

Ouço um rádio tocando em plena sexta-feira santa. E não era nenhuma melodia sacra que saía do aparelho. Uma canção comum, dessas de duvidoso gosto. Fui, então, transportado para a rua Leonardo Malcher, nos longínquos tempos da minha infância. No dia da morte do Cristo, era impensável que alguém ou alguma coisa fizesse o barulho que eu escutava. Até a criançada sabia disse muito bem e cuidava de se comportar com muito mais cuidado. Caso contrário, uma coisa era certa: depois do sábado de aleluia, a punição retroagia para atingir inapelavelmente o moleque que houvesse transgredido a lei do silêncio.

Como todas as celebrações da igreja católica, a semana santa era cercada de uma aura de mistério e esplendor. Ali, nos meus arredores, a igrejinha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, sob o comando do padre Leão, era aonde íamos os fiéis, adultos ou jovens, cumprir as obrigações que o culto impunha.

As imagens dos santos estavam todas cobertas com panos, geralmente da cor roxa, o que proporcionava uma visão quase macabra do templo. Entende-se. Tratava-se de um velório solene em que se guardava o corpo de ninguém menos que o próprio Cristo, falecido na nona hora da sexta-feira. E o seu rebanho, contrito, expressava por essa forma a tristeza de que era tomado, em relembrando o milenar evento.

A partir das quinze horas da sexta, nem os sinos tocavam mais. A hóstia não podia mais ser consagrada desde então e nas cerimônias ocorrentes, os momentos solenes eram marcados pelo soar da matraca. Tudo fúnebre, quase aterrorizante.

Mas não fora da igreja, onde a irreverência de pinguços tradicionais aproveitava a noite lúgubre da sexta para “serrar as velhas”. Era de uma crueldade hilária. Perto da meia-noite, o grupo se punha próximo à casa onde residisse uma senhora bem idosa. Impiedosamente, o espetáculo tinha início: serrando um pedaço de tábua, produzia-se um som sinistro no absoluto silêncio da noite e se ouvia uma voz roufenha profetizar a morte próxima da pessoa “homenageada”. Algo assim: “ai, dona Maria. Vai entregar sua alma a Deus e o corpo à terra fria”.

É evidente que muitas vezes os familiares da indigitada vítima de tão cruel brincadeira tomavam providências defensivas. Assim, não era raro que uma janela se abrisse e um penico repleto de urina fosse lançado sobre os bebuns, que, precavidos, estavam a uma distância razoavelmente segura. Já se vê que tal vadiagem tinha que ser

rápida, até para permitir que os atores se deslocassem para as residências de outros alvos.

A vida me afastou da religião e do menino coroinha que fui, todo empolgado com a fita amarela da cruzada eucarística, nada mais resta. Já não sei se no domingo da ressureição a celebração da missa ainda se reveste das mesmas pompa e beleza de que me lembro muito bem. O coro entoava “Aleluia” e o padre anunciava aos fiéis que o Senhor havia renascido, estando novamente presente no altar. Era inegavelmente bonito.

Tudo isso passou para mim. Hoje, só consigo torcer para que as religiões não sejam usadas para objetivos espúrios, nem busquem uma hegemonia impossível de alcançar. A História revela que todas as vezes em que se tentou algo desse tipo, o resultado foi desastroso, com guerras e explosões de mortes.

Mas, com todo o meu ateísmo, não me envergonho de confessar que sinto uma falta enorme da dona Lucíola e do professor Valois no almoço do domingo da Páscoa. Paciência.(Felix Valois é Advogado, Professor, Escritor e Poeta – [email protected])